terça-feira, 24 de abril de 2018

Um poema de António Reis

Verás amor
verás que
o coração
não morre
que tanta comoção
atrás dele
corre

António Reis. Poemas Quotidianos. Lisboa: Tinta-da-China, 2017

terça-feira, 17 de abril de 2018

Poesia - António Carlos Cortez

Um estrato   um veio   uma dama
Uma ave    uma nuvem    outra vida

Rebentação solar e escura tua voz dubitativa
Caligrafia intensa    Essa carne rediviva

António Carlos Cortez. A Dor Concreta. Lisboa: Tinta-da-China, 2016.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Francisco - José Pedro Moreira

dava de comer aos gatos no quintal
e eles vinham o pior era quando
as gatas escolhiam o quintal para dar à luz
a minha mãe enchia um balde com água
e metia lá os pequeninos até eles deixarem 
de miar eles já não miavam e depois
atirava-os para o caixote do lixo
não dês de comer à merda dos gatos
já estou farta de te dizer para
não dares de comer à merda dos gatos
e a gata miava à volta do limoeiro
miava debaixo do tanque
a gata miava até a minha mãe a enxotar
a gata fugia da minha mãe a minha
mãe com a vassoura não voltes
gata de merda nunca mais te quero aqui ver
e a gata fugia mas voltava mais tarde
e eu dava-lhe de comer e quando
a minha mãe me apanhava batia-me
estou farta de te dizer 
para não dares de comer à merda dos gatos

José Pedro Moreira. Gatos no Quintal. Lisboa: Enfermaria 6, 2018.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Estrada Nacional - Rui Lage

EN212

Da infração mais grave não sei:
deixar que mãos ausentes me conduzam
a sentidos proibidos
ou que falsos deuses do amor me desmandem
entre acidente e contigente.

Cumpra a brigada de trânsito a sua missão:
cace-me a carta
onde se obstina a tua fotografia,
reboque-me a carcaça sinistrada
ou de castigo me leve a carripana
e me deixe apeado na valeta, pois
de infracção mais grave não sei:
conduzir fora de mão
conduzir contra o coração.

EN2

Escavo as trevas à força de faróis:
aponto à estrada florestal
esses dois minúsculos sóis
com que inauguro galerias provisórias
claustros, arcadas, naves arbóreas, 
e de halos breves conjuro cancelas,
muros velhos, veredas, levadas.

O seu clarão torna visível o invisível,
traz coisas para a existência:
marcos quilométricos, apeadeiros,
serrações assombradas,
pilares de pesadelos que suspendem sobre os vales
absurdos viadutos aéreos. 

Com faróis ilumino porque não tenho luz própria:
cego viajo, como a traça, 
às voltas, às voltas,
tão negro como a noite que lá fora me cerca,
peixe dos abismos, toupeira,
cometa.

Rui Lage. Estrada Nacional. Lisboa: INCM, 2016.