quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Um poema de Rui Costa (1972-2012)

Autobiografia

Não preciso mas tu sabes como eu sou

Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas

Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.

As pessoas quando acordam são outras, já sabias,

Essa névoa contemporânea do medo miudinho

Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste

Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o

Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha

Tu bem sabes.

Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.

E a minha vida mudou, a noite cresceu,

A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria

Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.

Na luta perdi um ou dois braços,

Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,

São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,

O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica

E profunda: sem braços e agora sem mais nada.

Não me percebeste, enchi-me de fúria.

É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e

Atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos - ,

Ceifando. Saturno.e.o.vento.na.proa.erguendo.

O: navio:no:mar:parado:parado: completamente.

Parado.como dizer? Não dizer, eu sou.uma vida

Medonha e múltipla. E agora descanso

Deitado nestas mãos que mexem

Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos

P’la manhã.

Rui Costa, in A Nuvem Prateada das Pessoas Graves (Edições Quasi, 2009)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O extremo exercício de cansaço - Diogo Vaz Pinto


Li ontem a entrevista que o Herberto deu à Caras
onde, além de uns cremes de rejuvenescimento,
recomendava um produto para a queda de cabelo.
Fui comprá-lo esta tarde e sentei-me num café
a ler o folheto informativo – as contra-indicações
e possíveis efeitos secundários.

Experimenta-se tudo, desde a primária rima
e versos que trazemos da escola, até à parafernália
surrealista ou a perfuração de beleza que vem
incendiar a língua portuguesa, elevando e destruindo casas,
fazendo abrigos temporários para a saliva das horas
fundas e mais escuras onde nascemos e desaparecemos
sucessivamente, gravando com as unhas contra a parede
as memórias que criámos para os homens todos
que podíamos vir a ser.

Mas deixando-me agora de águas em que não tenho pé,
retomo o meu pequeno charco: minutos mais certos
e plausíveis, sem grande voz ou talento para cantar
aos ouvidos do futuro.

Já chove a sério lá fora, e nós aqui, noutro serão
demolhado, a comermos hambúrgueres
e a combatermos por um orgasmo
no intervalo do CSI Miami. (Que série tão
estúpida.) Espero que não leves a mal,
digamos que o romantismo no fim se reduz
a pouco mais que isto: uma flor degenerada de vez
em quando, a eventual partilha de leituras ou apenas
a rapidez com que atingimos o ponto de rebuçado
para nos desmancharmos nas margens
de um coração recidivo, vestígio animal
que só o tempo poderá domesticar.

Um dia ainda vou dar-te filhos, se é mesmo
isso o que tu queres – eu já estou por tudo. O mundo
ganha-nos todos os dias, infiltra-se no sangue
e nos espelhos da casa, cose-nos a sombra a prazos,
recados e listas de compras, estraga a nossa vontade
e dá-a a telenovelas e programas de rádio no caminho
para um trabalho que diz tudo sobre o que
não atingimos. Talvez mais tarde nos ataque o arrependimento
e lamentemos não termos perdido tudo ainda jovens,
com uma morte infantil numa brincadeira qualquer,
a dançar com algum sonho ou fugindo para muito longe
com outro alguém.

Diogo Vaz Pinto, Nervo. Averno, 2011

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Performance - Les Murray

Performance


I starred that night, I shone:

I was footwork and firework in one,


a rocket that wriggled up and shot

darkness with a parasol of brilliants

and a peewee descant on a flung bit;

I was blusters of glitter-bombs expanding

to mantle and aurora from a crown,

I was fouéttes, falls of blazing paint,

para-flares spot-welding cloudy heaven,

loose gold off fierce toeholds of white,

a finale red-tongued as a haka leap:

that too was a butt of all right!


As usual after any triumph, I was

of course, inconsolable.


(Subhuman Redneck Poems, 1996)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

o coração ou a gravidade


Marc Chagall, "Autumn in the Village", 1887-1985

dissemos que os nossos corações estão vazios,

como num processo de insolvência,


dado os empréstimos que fizemos à saudade.


agora que não podemos pagar as dívidas de amor

estamos hipotecados com o corpo.


José Duarte

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Um poema de Srikanth Reddy



If there is a story, it is this. At one point I had

tears in my eyes. Now I consider the light of

morning in a major university, reflecting on the

failure of reason in Alice in Wonderland. Each

week, I plan an assignment. Students, interrogate

form down to the last comma. Students, broadcast

the crimes of history. In March, the government,

mired once again in a morass of confusion

and double-dealing, had no way of explaining

American casualties in the war. It had neither

inside nor outside, like a long ago fire in the

world.


Voyager de Srikanth Reddy, 2011, 144 pp.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

[Down on your kness, Achilles]

 Down on your knees, Achilles.  Farther down.

Now forward on your hands and put your face into the dirt,

And scrub it to and fro.

Grief has you by the hair with one

And with the forceps of its other hand

Uses your mouth to trowel the dogshit up;

Watches you lift your arms to Heaven; and then

Pounces and screws your nose into the filth.

Gods have plucked drawstrings from your head,

And from the templates of your upper lip

Modelled their bows.

Not now. Not since

Your grieving reaches out and pistol-whips

That envied face, until

Frightened to bear your black, backbreaking agony alone,

You sank, throat back, thrown back, your voice

Thrown out across the sea to reach your Source.

War Music by Christopher Logue, published by Farrar, Straus & Giroux. Copyright © 1988 Christopher Logue.

todos a dançar

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Thiago Pethit - Não se vá


Duas pessoas em silêncio
Sempre dão tanto o que falar

Al Berto na Casa Fernando Pessoa

Al Berto 11/1/1948

Mais Nada se Move em Cima do Papel

mais nada se move em cima do papel

nenhum olho de tinta iridescente pressagia

o destino deste corpo

os dedos cintilam no húmus da terra

e eu

indiferente à sonolência da língua

ouço o eco do amor há muito soterrado

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço

no interior desta ânfora alucinada

desço com a lentidão ruiva das feras

ao nervo onde a boca procura o sul

e os lugares dantes povoados

ah meu amigo

demoraste tanto a voltar dessa viagem

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas

inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti

com uma esferográfica cravada no coração

Al Berto, “O Medo”

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Um poema de Jesús Jiménez Domínguez

HABLO de nuevo con el sepulturero, él acaricia el

hueso sacro de su pala y se estremece a su contacto

poderoso, conoce la llamada del topo y del poniente

sus diversas aleaciones, el helecho y otras melenas más

dormidas conjura en silencio, huele el humus mojado y

la caoba embriagadora a punto de zarpar hacia trópicos

inexactos


pues él pasa lista al carrusel de mis vértebras mientras

mastico grumos de luz incierta, ha paladeado la tila de

mis venas y sabe que estoy tranquilo, seguro en mi

desamparo cuando de nuevo le hablo, espectro de laúd

ahogado, desde el puente levadizo de la página


poema de Jesús Jiménez Domínguez do livro Diario de la anemia (Olifante, Zaragoza 2000)