Uma vez disse que gostava de entrar em Lisboa a cavalo, que partia de
muito longe, nem sabe de onde, e que ia por aí fora comendo terras e
terras a caminho do cotovelo do mar, desse recosto de terra onde, diz,
bate e bate o mar, e entrar na cidade montado no seu cavalo com ar
fresco e sorriso montado, e a malta toda a ver, todo o mundo na rua com
metais coloridos e braços altos tipo estátuas de vidro, mas um vidro
diferente, que não sabe bem explicar, e entra na cidade e vai por aí
fora, desfaz as ruas que muitos tempos antes, muitos anos antes
palmilhara sem freio, quando ali morava ou passava perto ou simplesmente
se imaginava pisando aqueles passeios, diz ele que se vê entrar na
cidade montado no cavalo e que depois chega à porta de casa e diz já cá
estou, e entra em casa montado no cavalo, tira qualquer coisa da mochila
e arranca em sentido contrário, retomando o trilho que o levara até
ali. Uma vez disse que gostava de montar uma tenda em Fuerteventura, mas
que só sabe Fuerteventura depois de escutar o disco de uma madrilena
que faz o sol inchar quando faz sol e a chuva engrossar no corpo quando
chove, que gosta, que quer chegar lá e montar uma tenda e ser valente,
correr descalço nos vulcões e pisar o mar, pisar do mar, diz, que a
grande valentia é saber pisar do mar, e que a valentia é a parte gorda
da vida, e quando disse isto nós sorrimos, nós gostamos e ficamos a
pensar em Fuerteventura e nos cavalos em Lisboa, diz que chega e monta a
tenda nas praias de Fuerteventura e depois fala numa selva, numa selva
que não é dali, que corre num cavalo pelo meio do arvoredo e que corre
cada vez mais depressa e o arvoredo não acaba, que passadas umas horas
se apercebe que afinal o cavalo não corre e que portanto ele está
sentado num tempo grosso mas um tempo ágil, nervoso, porque ao fim e ao
cabo os membros do cavalo estão activos e sincronizam-se no movimento do
passo, de um passo que parece vigoroso e harmónico, redondo, e que as
árvores continuam a malucar de um lado e do outro, sempre as mesmas
árvores, de todas as cores, diz, e perde-se na descrição das cores das
árvores, dos troncos?, da folhagem?, perguntamos, e fala no verde e no
roxo das árvores, do amarelo e do azul, do encarnado e do prata, diz o
prata, fala em árvores brancas, árvores que se repetem umas depois das
outras no bater aéreo das patas de um cavalo gigante, diz, um cavalo que
imobilizado mas em movimento vai ganhando corpo e cresce e as árvores
crescem mas não tanto, como se a vontade do cavalo prevalecesse sobre a
da cor da selva. Fala devagar quando fala de Fuerteventura ou quando se
lembra da alegria de Lisboa. Uma vez também disse que tinha uma vontade
de barco e quando disse isto ninguém percebeu ao certo o que queria
dizer, por minha parte só passados uns anos entendi o que era possuir um
arranque daqueles, que tinha uma vontade de barco, e braços de barco e
uma cabeça feita de barco, que tinha aquelas maneiras tão feitas e tão
agrestes e que podia desaparecer para sempre mar adentro, qualquer mar,
qualquer praia, diz, e remar meses e anos e todo o tempo rumo ao chão do
mundo ou ao tecto do mundo e evitar terra quando a visse, inverter rota
ao mínimo avistamento de um objecto fixo, desviar aquele corpo de barco
dos outros, manter os olhos na mais ínfima das folas, diz, conservar o
barco num ideal de movimento contínuo, incessante, um remar eterno, um
remar de não querer chegar nunca, remar até que dele se esqueçam e ele
próprio, muito antes disso, se esqueça daquele corpo de barco que a
língua de um país lhe tinha ensinado.
Retirado daqui
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