quinta-feira, 29 de março de 2012

Adrienne Rich (1929-2012)

Dreamwood
By Adrienne Rich

In the old, scratched, cheap wood of the typing stand
there is a landscape, veined, which only a child can see
or the child’s older self, a poet,
a woman dreaming when she should be typing
the last report of the day. If this were a map,
it would be the map of the last age of her life,
not a map of choices but a map of variations
on the one great choice. It would be the map by which
she could see the end of touristic choices,
of distances blued and purpled by romance,
by which she would recognize that poetry
isn’t revolution but a way of knowing
why it must come. If this cheap, mass-produced
wooden stand from the Brooklyn Union Gas Co.,
mass-produced yet durable, being here now,
is what is is yet a dream-map
so obdurate, so plain,
she thinks, the material and the dream can join
and that is the poem and that is the late report.

Adrienne Rich, Poetry, 1987.

O Polícia

Estava sentado numa pequena cadeira, junto ao balcão do café. Bebia um copo ou outro, porque tinha acabado de sair do serviço. Era apenas para relaxar. O empregado do café permanecia de pé à espera de clientes. A sala principal era um local pouco iluminado, mas arrumadinho. Ao fundo dessa sala uma televisão passava um jogo de futebol. De vez em quando o homem virava a cara, concentrava-se e tentava saber qual o resultado.

O outro homem sentou-se ao lado do primeiro homem. O primeiro homem, de vez em quando, levantava o chapéu e coçava a cabeça, em sinal de aborrecimento. O segundo homem, depois de pedir um copo para aliviar a tensão, reparou no esforço do primeiro homem sempre que tentava ver o resultado do futebol. Estranhando a falta de visão do homem perguntou-lhe como fazia quando era para apanhar ladrões, uma vez que não via muito bem. O polícia respondeu-lhe que, na maior parte das vezes, fechava os olhos. Não porque era mais fácil, mas porque se sentia muito cansado.


De Tudo o que acontece

(José Duarte)

Saúde Pública

O homem olhou desconfiado, arqueou a sobrancelha, e depois de algum espanto, fingiu-se desinteressado, embora não conseguisse tirar os olhos do objecto. O outro homem tinha nas suas mãos um pequeno tubo no qual estava um líquido. Apontava o tubo para a luz e sorria. Dizia que com aquela vacina, finalmente, poderiam salvar os animais dos homens e, enfim, tornar o mundo um lugar mais arrumado. O primeiro homem olhou para o segundo e perguntou: - Tem a certeza disso, Herr Doctor?


De Tudo o que acontece

(José Duarte)

quinta-feira, 22 de março de 2012

Um quarto com vista para o Hudson

antes da descida
aos infernos
aluguei um
quarto com vista
para o Hudson

serpenteava ainda
o rio como o sexo
lânguido por entre
as margens do corpo

encostadas, ainda que por breves
momentos, à janela
obedecendo ao movimento
dos barcos que fumegavam
nas águas do porto
empurrando as ondas

partindo com origem
mas sem destino
deixando um rasto
de espuma que
depois se desvanece

a noite parece longa
carrego no botão do elevador
para descer

em desespero
entrego-me à pornografia
dos lugares comuns
e das luzes da cidade
de todas as cores

não há já
caminho que possa percorrer
resta apenas a certa solidão
a sombra exacta do que
guardo no coração

por entre
os dedos
ardendo na boca

Da série Cinematografias
(A sair um dia destes)

José Duarte


quarta-feira, 21 de março de 2012

We used to wait

costumávamos esperar
pela chegada do velho
perto das escadas da igreja
já bem quase ao entardecer
sabíamos que se iria
sentar por ali
durante algum tempo a meditar

(aproveitávamos
para ir comer ainda os grilos
cantavam)

no regresso já ele
empunhava a máquina
maravilhosa do tetris
parando o jogo
conforme a necessidade
do seu pensamento
e nós espantados a olhar
a forma meticulosa de encaixe
para cada peça, de modo a que
nunca o jogo passasse de uma linha só

a margem de erro
pequena, apontando
para a sua formação
de carpintaria
dizia ele

esta era uma forma de fazer
arte, como trabalhar a madeira
cada peça no seu lugar
e, se ela não encaixa,
é necessário
procurar o erro

por isso todos
o chamavam
de mestre antes do
seu primeiro nome

e houve quem pensasse
que o velho era poeta

Da série Biografia não oficial
(A sair um dia destes)

José Duarte

P.S.: Escrito a propósito do dia mundial da poesia.

Firehorse - Our Hearts

terça-feira, 20 de março de 2012

A porta de Duchamp - Rosa Maria Martelo


Quando vivia em Paris, no pequeno apartamento da rue Larrey, n.º II, Duchamp fez instalar dentro de casa uma porta que não podia estar nem aberta nem fechada porque estava sempre aberta e fechada ao mesmo tempo. Uma porta que ele abria quando a fechava (fechada mesmo aberta, como alguém disse acontecer com os livros) e que descolava da sua função de porta, como a palavra porta descola de qualquer porta se a dissermos duas vezes: uma porta-porta. A dele rodando entre dois umbrais e, por isso, incapaz de preencher um vazio sem abrir outro vazio. Duchamp tinha-a colocado ali para não esquecer que há em tudo uma parte de nada, um vão impossível de preencher sem que logo se abra outro mesmo ao lado. Mas desde então dormia mal, por causa dos gritos dessa porta, ao mesmo tempo concreta e abstracta, deslocada e infeliz como uma alegoria sem propósito. E quando não conseguia dormir, e se levantava às escuras para ir beber um copo de água, acontecia-lhe hesitar diante da sua invenção: «aberta, fechada?». Nessas alturas, se via que Duchamp ia enganar-se outra vez, a porta-porta mudava de posição e empurrava-o docemente para o lado do vazio. Além de gritar e ser didáctica, que mais pode uma porta para se fazer entender? Duchamp desaparecia então no fundo escuro da cozinha, e sempre dava consigo a pensar sem saber muito bem porquê que, talvez por estarem tão cheios de nada, os gritos da sua porta-porta lhe faziam afinal fraternamente companhia. Depois, no regresso ao quarto, hesitava novamente – «aberta, fechada?» – mas, com os braços um pouco adiante do rosto, atravessava agora o vazio a passos mais decididos.

MARTELO, Rosa Maria, “A Porta de Duchamp”, Lisboa: Averno, 2009. p. 7-8.

Flor de Lótus

segunda-feira, 19 de março de 2012

Um novo poema

A Balada de Bonnie & Clyde

crime, alguém gritou!

eu não lhe chamo crime
eu chamo-lhe amor,
amor louco para ser mais correcto
sexo em movimento
o corpo em alerta

a brisa da velocidade
que circula
por entre as janelas
abertas do carro
e o sentido de liberdade

que outra estrada
não pode dar

ela enconstada
no ombro dele

vieram de longe
e continuam esfomeados
pelo horizonte

pelo menos ele
a quem a visão ainda
continua turva
pela circulação

que ela alimenta
mas a que reconhece
um fim

não há hipótese
de ir continuando
apenas

sem limites
nem barreiras
fugindo às regras
obedecendo ao romance

como Eva ela
dá-lhe a comer a maçã
como Adão ele aceita

a visão toldada
com os óculos

de um lado
vendo claramente
do outro
adivinhado uma
certa escuridão

da paragem que, na certa,
lhes impõe um fim
armadilhado

em câmara lenta
ele olha para ela
ela olha para ele

tem as mãos no volante
ele dá um passo em frente

por momentos
o ar engrossa
torna-se pesado

sustemos a respiração

as aves
desprendem-se
das árvores
e voam

os corpos
tombam

warren beatty,
faye dunaway,
Clyde,
Bonnie

para sempre.

Da série Cinematografias
(A sair um dia destes)

José Duarte

Bright Moments - Travelers

terça-feira, 13 de março de 2012

Em todo o caso

à saída de casa
fecho a porta
rodando a chave até ouvir
um último clique
ao virar as costas
agosto cai
como os raios de sol
que respiro lentamente

há uma cidade branca
que se extingue
lamentavelmente
como o barulho dos
pássaros que habitam
as árvores dos parques

fica, entretanto, o silêncio
ponho a chave no bolso
com todo o cuidado
não vão também dar conta
da minha presença.

Da série Biografia não Oficial
(A sair um dia destes)

José Duarte

Towers - Bon Iver

segunda-feira, 12 de março de 2012

Memória

não é que propriamente
me sinta errado,
mas o sentimento é estranho
aceno que sim
porque sim
a cabeça faz bem aquele movimento

são ainda reveladas
de um rolo antigo
as tuas fotografias
como se quisessem mesmo contar
uma história - as imagens ligadas umas às outras -
a película que gravou aquele instante

mas não conheço os sítios nem as pessoas
só sei que
há felicidade ali, naquela imagem
e a demasiado óbvia nostalgia
de quem salta entre oceanos

da minha parte
ou melhor, da minha infância
sujei-me muito e fiz sujar outros
mesmo quando achava que procedia mal
e saltava muros e quintais

e enganava-me frequentemente
pensando como era bom
poder estar assim
para sempre

mas sabia que não ia ser assim
portanto, calculo que saibas como me
sinto se não percebo a dimensão
de uma sala ou de um quarto
ou de brinquedos ditos
numa outra língua
que eu entendo,
mas que me é estranha

nunca vi neve
e a paisagem é diferente
é natural que o meu coração
pule e se engane
e guarde o sangue
desejando também ter estado ali

mas não estive
não é que faça a diferença
só torna ainda mais enigmático
a forma como compreendo
o que me explicas

aguardas a resposta
e eu digo que sim
há memórias
boas, de coisas que se guardam

e outras que não descolam
da pele

são diferentes as casas que habitamos
guardam objectos
e mobílias estranhas
com gavetas cheias de segredos

e se o silêncio por vezes
não chega
fechamos as portas e seguimos
em frente
selando-as indeterminadamente
até que o branco da cal ou o azul
do mar
nos traiga do esquecimento

ficando assim
a olhar o que podia ser eterno
e não é
o que foi guardado no passado
e não pode ser presente

essa matéria dos anos
que engana os homens

falas
eu continuo a dizer que sim
e respiro fundo

viras a cara
sei que sentes exactamente
o mesmo quando te digo
que já dormi ali.


Da série Biografia não oficial
(A sair um dia destes)

José Duarte