sexta-feira, 27 de março de 2015

PURA - Raquel Nobre Guerra


esta gente que colhe água para derramá-la
compassivamente sobre a chaga
esta virtuosa carraça da solidão pública
com redentor cigarro público também
esta solidão assediando cretinos e sábios
esta deserta implausível cartada
grande força erguida a prumo
esta gente sobre esta imperial e sopa à frente
esta gente que se levanta de peito e escreve
para não matar ninguém


Groto Sato, Raquel Nobre Guerra. Lisboa: Mariposa Azual, 2012.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Madrid

Vês, apesar de me faltarem as 
palavras
         bem me tento expressar e, melhor ou pior,
qualquer coisa vai saindo, nem que seja noutra
língua e com uma hora de diferença.

Enquanto descíamos as ruas, maravilhosos 
braços de alcatrão, ensinava-te a dizer

sítios e gentes, coisas e sentimentos
                        e se a fome apertava

(para mim era sempre cedo)

paella, bocadillo ou churros con chocolate
serviam de alimento

ocupando as horas em que algum silêncio
se instalava

a cidade aberta
e na tua memória         o interminável jardim,
um lago imenso repleto de barcos e pessoas
que nem sequer 

                         sabiam remar

no regresso a palavra que nunca esquecerás:
lechuga

que nem chegámos a provar.

José Duarte


segunda-feira, 16 de março de 2015

um poema de João Almeida

os poetas devem morrer de tuberculose, na miséria
isso ou artista doméstico
fato de treino e perversões de periferia
o resto é abaixo de gato


eis onde estou e pergunto
vais abandonar este poema
o verso que redime não to prometo

procuro nos tantos livros amontoados
nos tantos poemas à espera nas feiras ao sol e à chuva
pode ser que surja um olho avulso
a palavra invisível do primeiro verso

Herodes mata o que nasce
como todos os dias as nossas mãos.



Glória e Eternidade, Teatro de Vila Real, 2009

Retirado daqui.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Um poema de Marília Garcia

1.
no filme pierrot le fou de jean-luc godard
tem uma cena em que os amantes ferdinand e marianne
estão fugindo em um carro conversível vermelho
por uma estrada ensolarada
no litoral sul da
frança
nesta cena de pierrot le fou
a câmera filma os dois a partir do banco de trás do carro
nesta cena de pierrot le fou
o ponto de vista do espectador é de quem está de fora
porque os dois estão de costas para a câmera
apesar disso a estrada vai se abrindo à frente
e o movimento carrega todo mundo pra dentro da história
nesta cena de pierrot le fou
o diálogo que ocorre entre ferdinand e marianne
tem um tom bastante leve
para a gravidade do assunto
eles discutem o que farão agora
depois de fugirem juntos depois que ele largou mulher e filha
depois de se envolverem com tráfico de armas
com um assassinato e de roubarem este carro
ferdinand quer parar em alguma praia tranquila
e ficar com marianne por um tempo
ferdinand diz mais de uma vez que está apaixonado
mas marianne responde que eles precisam de dinheiro
ela sugere que procurem seu irmão para conseguirem grana
e poderem ir para um hotel chique se divertir
nesse momento ferdinand se vira
olhando para trás na direção da câmera
e diz – estão vendo
ela só pensa em se divertir
marianne se vira também olhando para trás
na direção da câmera
e pergunta pra ele – com quem você está falando?
ao que ele responde – com o espectador
esse curto diálogo de pierrot le fou
contribui para dar ao filme sua dimensão de filme
de algum modo essa menção ao espectador
fura o filme e insere nele uma espécie de
corte
interrupção que dá a ver mais concretamente
a dimensão da montagem no cinema
a mídia que poderia passar desapercebida
no produto final
irrompe no filme criando uma descontinuidade um furo
o que sinto ao pensar em você
ela disse
é um furo
se penso na poesia
quais recursos ao lado do corte
poderiam contribuir para tornar o poema
um poema?

Marília Garcia. Um Teste de Resistores. Lisboa: Mariposa Azual (2014)

segunda-feira, 2 de março de 2015

Um poema tenrinho pode ser - Nuno Moura

Um poema tenrinho pode ser
quando tu morreres vou tirar a carta
ou
o mosteiro dos pulmões ataca uma barriga sem grades
e nasce uma quantidade razoável de imagens
indo da agulha de cintilo
aos dentes de um morcego beija-mão.

mas pode ser escrever chamar otários
sabrões
zarpos
garôlos
altos comissários
nas paredes para as ruas
das garagens-oficina nova era automóvel.

mas pode ser amor drógádo
síque
não presta.

mas pode ser tão difícil.
mas pode ser
liga à tua antiga madrinha-de-guerra
vai ter com ela saca-a ao marido
mexe com esta merda
pá.


Nuno Moura
(n.1970)
poetas sem qualidades
Averno
 
Retirado daqui.