sexta-feira, 6 de março de 2015

Um poema de Marília Garcia

1.
no filme pierrot le fou de jean-luc godard
tem uma cena em que os amantes ferdinand e marianne
estão fugindo em um carro conversível vermelho
por uma estrada ensolarada
no litoral sul da
frança
nesta cena de pierrot le fou
a câmera filma os dois a partir do banco de trás do carro
nesta cena de pierrot le fou
o ponto de vista do espectador é de quem está de fora
porque os dois estão de costas para a câmera
apesar disso a estrada vai se abrindo à frente
e o movimento carrega todo mundo pra dentro da história
nesta cena de pierrot le fou
o diálogo que ocorre entre ferdinand e marianne
tem um tom bastante leve
para a gravidade do assunto
eles discutem o que farão agora
depois de fugirem juntos depois que ele largou mulher e filha
depois de se envolverem com tráfico de armas
com um assassinato e de roubarem este carro
ferdinand quer parar em alguma praia tranquila
e ficar com marianne por um tempo
ferdinand diz mais de uma vez que está apaixonado
mas marianne responde que eles precisam de dinheiro
ela sugere que procurem seu irmão para conseguirem grana
e poderem ir para um hotel chique se divertir
nesse momento ferdinand se vira
olhando para trás na direção da câmera
e diz – estão vendo
ela só pensa em se divertir
marianne se vira também olhando para trás
na direção da câmera
e pergunta pra ele – com quem você está falando?
ao que ele responde – com o espectador
esse curto diálogo de pierrot le fou
contribui para dar ao filme sua dimensão de filme
de algum modo essa menção ao espectador
fura o filme e insere nele uma espécie de
corte
interrupção que dá a ver mais concretamente
a dimensão da montagem no cinema
a mídia que poderia passar desapercebida
no produto final
irrompe no filme criando uma descontinuidade um furo
o que sinto ao pensar em você
ela disse
é um furo
se penso na poesia
quais recursos ao lado do corte
poderiam contribuir para tornar o poema
um poema?

Marília Garcia. Um Teste de Resistores. Lisboa: Mariposa Azual (2014)

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