segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

asfalto - assalto

toda a história é uma tragédia,
os personagens encontram-se sempre
num certo escuro
de ombros encolhidos

fugir parece ser a solução ideal
mas nem isso concede a tão
almejada liberdade

resta conduzir
sem destino
ou sem destino
conduzir
sabe-se lá bem para onde

o carro - a cidade
a casa - o carro
e tu, enconstada no meu ombro,
os teus olhos duas covas fundas
da qual saem lágrimas de cinza

e eu, cansado, cigarro ao canto
da boca e a desconfiança
do retrovisor
não vá o passado trair-nos.

que disparate
e sigo aquela linha branca
agarro com força, as mãos
no volante.
meto a quinta
e acelero
acelero
a-ce-le-ro

a pulsação
pneus a chiar
são e salvo

agora que descemos
o desfiladeiro
como thelma e louise

bem, não como elas,
mas quase.

um sobressalto
do assalto
ao meu coração.

Da série Cinematografias
(A sair um dia destes)

José Duarte

curto

estava quase capaz de cair nos teus braços.

Beach House - Silver Soul

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Taylor Project - We Are the Swimmers

A estrada, a estrada

The interstate system is the final stage of American highway development. As the automobile became more prevalent, faster, and ultimately essential to our way of life, the landscape was modified to accommodate this new necessity. The automotive highway was built on paths, tracks, pikes, roads of a horse and pedestrian era. In the early period […] The automobilist was an adventurer challenging territory and terrain. But soon changes came to the road itself […] There was a whole set of accouterments to accommodate the needs and desires of drivers, passengers, automobiles, and the road itself. Any stretch of road came to contain information for orientation, direction, and traffic management. Its signs, lights, and stripes, became second nature. There were places to service the car and to serve the mobile populace. The landscape – urban, suburban, rural, became an automotive one.

Kenneth I. Helpland, “The 1950s and the birth of contemporary landscape”, Places, Volume 5, nº2, pp. 40-49, 1988.

Um poema de Ruy Belo

Atropelamento mortal

Nalgum oásis do princípio ele fora

um fugitivo brilho no olhar de Deus

-a vida havia de lho lembrar muitas vezes.


Atravessou as nossas ruas entre gatos,

a chuva molhou-lhe as pobres botas cambadas.

Teve um banco de jardim, teve amigos, um deles o sol.

Sempre sem o saber procurou Deus.

Um dia foi campos fora atrás dele, perdeu o emprego

na Câmara Municipal. Teve mãe mas depois

nunca mais foi solução para ninguém.


Naquele dia a morte instalou-o

confortavelmente no céu. Lá se foi

com seus modos humanos, seus caprichos

e um notório acanhamento em público

(há-de a princípio faltar-lhe à-vontade entre os anjos).


Tinha o nome no registo, agora habita

nas planícies ilimitadas de Deus.

Nas suas costas ainda se derrama

a tarde interrompida.

Manhãs e manhãs desfilarão sobre ele,

caracóis cobrirão a memória daquele

que foi da sua infância como qualquer de nós.


Teve um nome de aqui, andou de boca em boca,

agora é Deus que para sempre o tem na voz.

Ruy Belo

Aquele Grande Rio Eufrates

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012


alguns, claro, preferem a vida
mais por dentro do que por fora
não precisam conhecer o que há a mais
pois cada universo tem os seus limites,
mesmo que sejam curtos
não se pode, de alguma forma, impor a felicidade
com ou sem pirâmides ou estátuas gigantescas
que regalam o nosso olhar
há quem goste apenas de cavar a terra e de viver com
o medo que esta não dê o fruto do trabalho
há quem seja pequeno e não precise
do intervalo de outras horas
nem de saber as línguas da razão
há quem seja ainda feliz
não precise sequer de saber a obrigação
a vida é simples: nasce-se, vive-se, morre-se
dentro do coração
em herança e há tanta coisa que não precisamos
saber; para saber o bem também temos de conhecer o mal
resignemo-nos à vida mais simples,
a mão a aquecer com o sol
o corpo a sentar na cadeira de palha
e a respiração pequena
vagarosa
como quem fecha os olhos
e só precise viajar em silêncio.

a vida em ruínas, é disso que se trata
se a soubermos depois reconstruir
seja lá o que isso for.

Da série Biografia não oficial
(A sair um dia destes)

José Duarte

Quarta-feira de cinzas

Because I do not hope to know again
The infirm glory of the positive hour
Because I do not think
Because I know I shall not know
The one veritable transitory power
Because I cannot drink
There, where trees flower, and springs flow, for there is nothing again

T.S. Eliot, Ash Wednesday


domingo, 19 de fevereiro de 2012

Declaração de Intenções - Margarida Vale de Gato



Para aqueles que insistem diluir

isto que escrevo aquilo que eu vivo

é mesmo assim, embora aluda aqui

a requintes que com rigor esquivo.


À língua deito lume, o que invoco

te chama e chama além de ti, mas versos

são uma disciplina que macera

o corpo e exaspera quanto toco.


Fazer poesia é árido cilício,

mesmo que ateie o sangue, apenas pus

se extrai, nem nunca pela escrita


um sólido balança, ou se levita.

Então sobre o poema, o artifício,

a borra baça, a mim a extrema luz.


Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar, 2011, Mariposa Azual

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Margarida Ferra - Curso Intensivo de Jardinagem




Ontem adormeceste, ainda
tínhamos as facas todas na boca
e três por abrir.
Ficou uma pousada
em equilíbrio geométrico
na linha dos lábios.
Não sei de quem eram
esses lábios onde
o gume imóvel não deixava sair
as palavras duras
e, mais tarde, os pesadelos
Outras o cabo na minha mão,
esqueci-a antes da última
costela flutuante
depois do coração.

De manhã éramos só nós, frios,
e a memória das cinzas na rua.

A terceira foi como se nunca tivesse existido.

Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, 2010.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

La Canción desesperada - Pablo Neruda

Emerge tu recuerdo de la noche en que estoy.

El río anuda al mar su lamento obstinado.

Abandonado como los muelles en el alba.

Es la hora de partir, oh abandonado!

Sobre mi corazón llueven frías corolas.

Oh sentina de escombros, feroz cueva de náufragos!

En ti se acumularon las guerras y los vuelos.

De ti alzaron las alas los pájaros del canto.

Todo te lo tragaste, como la lejanía.

Como el mar, como el tiempo. Todo en ti fue naufragio!

Era la alegre hora del asalto y el beso.

La hora del estupor que ardía como un faro.

Ansiedad de piloto, furia de buzo ciego,

turbia embriaguez de amor, todo en ti fue naufragio!

En la infancia de niebla mi alma alada y herida.

Descubridor perdido, todo en ti fue naufragio!

Te ceñiste al dolor, te agarraste al deseo.

Te tumbó la tristeza, todo en ti fue naufragio!

Hice retroceder la muralla de sombra,

anduve más allá del deseo y del acto.

Oh carne, carne mía, mujer que amé y perdí,

a ti en esta hora húmeda, evoco y hago canto.

Como un vaso albergaste la infinita ternura,

y el infinito olvido te trizó como a un vaso.

Era la negra, negra soledad de las islas,

y allí, mujer de amor, me acogieron tus brazos.

Era la sed y el hambre, y tú fuiste la fruta.

Era el duelo y las ruinas, y tú fuiste el milagro.

Ah mujer, no sé cómo pudiste contenerme

en la tierra de tu alma, y en la cruz de tus brazos!

Mi deseo de ti fue el más terrible y corto,

el más revuelto y ebrio, el más tirante y ávido.

Cementerio de besos, aún hay fuego en tus tumbas,

aún los racimos arden picoteados de pájaros.

Oh la boca mordida, oh los besados miembros,

oh los hambrientos dientes, oh los cuerpos trenzados.

Oh la cópula loca de esperanza y esfuerzo

en que nos anudamos y nos desesperamos.

Y la ternura, leve como el agua y la harina.

Y la palabra apenas comenzada en los labios.

Ese fue mi destino y en él viajó mi anhelo,

y en él cayó mi anhelo, todo en ti fue naufragio!

Oh, sentina de escombros, en ti todo caía,

qué dolor no exprimiste, qué olas no te ahogaron!

De tumbo en tumbo aún llameaste y cantaste.

De pie como un marino en la proa de un barco.

Aún floreciste en cantos, aún rompiste en corrientes.

Oh sentina de escombros, pozo abierto y amargo.

Pálido buzo ciego, desventurado hondero,

descubridor perdido, todo en ti fue naufragio!

Es la hora de partir, la dura y fría hora

que la noche sujeta a todo horario.

El cinturón ruidoso del mar ciñe la costa.

Surgen frías estrellas, emigran negros pájaros.

Abandonado como los muelles en el alba.

Sólo la sombra trémula se retuerce en mis manos.

Ah más allá de todo. Ah más allá de todo.

Es la hora de partir. Oh abandonado!


Pablo Neruda, 20 poemas de amor e una canción desesperada