quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O Fruto - Rui Miguel Ribeiro


Registam a febre e o coração.
Neste fim de março em que
não vejo árvores de fruto,
chegam-me as novas da minha
nespereira, pejada, dizem-me.
À espera, como o meu sangue,
de que a vida seja uma protecção
adocicada, carnuda e macia,
pronta a colher.
XX dias, Averno, 2009.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Poema de Nuno Brito


OUTRA FORMA DE MENTIR
I. 
Sou a verdade, uso uma mini-saia vermelha,
Vejo os homens masturbarem-se nas sua varandas enquanto me olham,
passo nas ruas de Alexandria, Berlim, Tóquio, Budapeste,
Bernini esculpiu-me, Whitman descreveu-me
mas nunca nenhum homem me possuiu
Por mim correrão futuros antiquários ainda por nascer
Afundo-os de desejos, mutilo-lhes os sonhos
Sou múltipla e tudo acendo sobre a forma de calor,
Quem tem medo está mais próximo de mim, estou na boca dos amantes,
Nos seus ternos abraços
Duplo Poço, Haremuj, 2012.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Jovem mulher numa capela da aldeia - Rui Lage


Num banco junto à parede,
fértil e escura como terra lavrada,
os olhos adormecendo no incenso
que a tomava pela cintura
e lhe dava o cansaço
da madrugada.

Os cabelos negros enredando o frio
que vinha de fora
pela porta que alguém esquecera aberta
mostrando ao fundo o rio
e a laranjeira despida
pela geada.

Morte
em ambos os lados da porta
dando entrada
e súbito o dia
e depois
mais nada.
Corvo, Quasi Edições, 2008.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Herberto

nunca mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo -
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só seu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-los numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio


ServidõesAssírio & Alvim, 2013

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A luz de Lisboa - Nuno Júdice

A luz atravessa o quarto entre
as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora
de um lado seja o poente - onde está o sol, agora - e do outro
o nascente - onde o sol já esteve. No quarto
juntam-se poente e nascente, e é esta
luz que confunde o olhar, que não sabe em que
hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha
que percorre o espaço entre as duas janelas,
como se não tivesse princípio nem fim; e
o que faço é puxar essa linha para dentro
do quarto, e enrolá-la, como se me
pudesse servir dela para atar as duas extremidades
do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique
parado entre duas janelas, a poente
e a nascente, até que o fio se volte
a desenrolar, e tudo
recomece.


A Matéria do Poema, Dom Quixote, 2008.