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domingo, 22 de dezembro de 2019

Raquel Nobre Guerra - Um poema de Senhor Roubado

«Quem nunca hesitou na paragem do 28
e pensou: ali vai a metáfora da minha vida.
E nem por pensá-lo escapou ao açude
de mandar parar tanta gente só por si.
Não é possível ser feliz com tanta correspondência
e entre nós que vamos em itinerários românticos
cruz na porta da tabacaria é tão-só o aviso
para lavar a cabeça contra o pessimismo.
Se não te aconchega o lumaréu de estar vivo
não te aflijas quando predizem a meteorologia
uma estação no inferno será sempre o destino.»

sexta-feira, 27 de março de 2015

PURA - Raquel Nobre Guerra


esta gente que colhe água para derramá-la
compassivamente sobre a chaga
esta virtuosa carraça da solidão pública
com redentor cigarro público também
esta solidão assediando cretinos e sábios
esta deserta implausível cartada
grande força erguida a prumo
esta gente sobre esta imperial e sopa à frente
esta gente que se levanta de peito e escreve
para não matar ninguém


Groto Sato, Raquel Nobre Guerra. Lisboa: Mariposa Azual, 2012.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Há dez anos que escrevo o mesmo poema - Raquel Nobre Guerra

Há dez anos que escrevo o mesmo poema
no mesmo café.
Esta ideia arrumada nesta cadeira triste
todos os dias no mesmo sítio.
Até que me venham bater à porta
ando meio distraída nisto. 

Falam-me da barbárie e dos seus irmãos brutos
mas ninguém falou ainda da flor de Coleridge
nem das pernas melancólicas dos meus amigos. 

Exceptuando isto penso no imenso com os dentes.
Penso num serviço de chá e numa porta de serviço.
Penso num chão absoluto no petróleo e na lixívia.
Penso na tua cabeça enunciativa e és um Rolls
às nove e meia da noite para toda a parte comigo. 

Exceptuando isto talvez não se morra e ninguém
desça à guerra e ao medo senão pelos livros.
Penso no amor e exceptuando isso está frio
e a mudança de hora e a jukebox
e contar-te os meus medos porque penso nisto há dez anos
que penso nisto. 
Cruz na porta da tabacaria e o teu cabelo
cortado à escovinha.
Há dez anos que desconfio do mesmo poema 

forma inteira do homem para diante
e de diante para o abismo
  
E poder ser livre e fumar na cama
com a excitação de arder numa linha. 

É que Sócrates nunca escreveu.
Milton ao menos fingia.
No fim de contas caía bem.
Um Kropotkin e uma bica.

E convicção ser do teu signo.
Porque uma coisa nos atraía.
Fome não era adição.
Erecção não era cinismo.
Porque havia motivo para risos. 

Tu nunca te atrasaste.
Tu nunca te mataste.
Porque enfim não mentiste 

que há dez anos que escreves o mesmo poema 

tu que só queres o sol
para descê-lo para descê-lo
ilha dos amores  

no mesmo corpo no mesmo casaco
apoiado à esquerda do meu braço.

Publicado no nº2 da Enfermaria 6, Julho 2014. Retirado daqui.