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domingo, 22 de dezembro de 2019

Raquel Nobre Guerra - Um poema de Senhor Roubado

«Quem nunca hesitou na paragem do 28
e pensou: ali vai a metáfora da minha vida.
E nem por pensá-lo escapou ao açude
de mandar parar tanta gente só por si.
Não é possível ser feliz com tanta correspondência
e entre nós que vamos em itinerários românticos
cruz na porta da tabacaria é tão-só o aviso
para lavar a cabeça contra o pessimismo.
Se não te aconchega o lumaréu de estar vivo
não te aflijas quando predizem a meteorologia
uma estação no inferno será sempre o destino.»

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Rosto, Clareira e Desmaio - Miguel-Manso

O nervo vago sai do crânio pela cova jugular,
suspenso desde o hangar das ideias, a vacilar postura abaixo


até à natureza,


até ao bosque do coração, por exemplo, 
até, por exemplo, ao músculo da fala, monstruoso,
por exemplo, até à pele transpirada onde os insectos famintos
vêm beber.

Tudo o mais que povoa e opera cé em baixo,
na natureza humana,
é vagamente transmitido por este nervo, e quando não,
chamamos de síncope vagal ao fenómeno. 

Desmaio, maduro desmaio, abertura
ao Universo,
Secreção de sentenças e oráculos ponderados nos hangares,
depois convertidos em angústias e esgares.

É uma inclinação sem ponto fixo.
Uma infecção a partir da qual.
Tudo o que sai do homem é supersticiosamente impuro
- ó arame, diz-me quem te enrolou farpado? - 
e deverá ser purgado no excesso ou, no meu caso, 
no resfriado que se apanha no vento de feiticeiros e nas coisas
teleguiadas

Operou em mim não sei que inclinação
para o mistério. Fui estrangeiro de tudo menos da velocidade
com que escrevi a palavra do bosque 
e depois a esqueci, lançando o meu abismo sobre 
o grande xiu!

Rosto, Clareira e Desmaio. Miguel-Manso. Douda Correria. 

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Nuno Marques - Dia do Não (Douda Correria, 2018)

  «uma faca um murro
no ventre 
na barriga 
nos bofes
nas bochechas 
nas orelhas 
no peito 
nas nádegas

                abrir 
                sangrar 
                entrar 

                contra o muro 
em pé à bruta 
                de costas com força 
                a roncar 
                a estremecer 

                calado 
                uma chapada 
entre os olhos
                a abrir 
                a entrar »

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Fim da Era - Manel Seatra


As paredes fecham-se aos intrusos, a cidade torna-se num cubo de luzes e suspiros e
as rotundas são sempre desenhadas a compasso, sem falhas de circunferência
imprecisa ou de batota nos cálculos.

Dias de Folga. Lisboa: Douda Correria, 2018.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Um poema de Tédio Tropical - Iván Prego

De braços abertos
à procura do abraço,
o funambulista.
Estreito arame
seu trilho livre da lei
gravidade e ousadia,
trémulo na dicotomia
morte ou solidão.
Acende um fósforo,
levanta voo,
afinal é um corvo!

Iván Prego. Tédio Tropical. Lisboa: Douda Correria, 2017.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Cláudia R. Sampaio

Sai-se do hospital com a tontura 
dos círculos  
com uma picadinha no cérebro,  
uma barriga a mais  
sai-se com a Lena que grita  
pela mãe  
e com o Rui, que joga Sudoku  
com o diabo  
sai-se com feridas na língua  
e nos olhos  
e um coração espalmado e servido  
em travessa  
sai-se e fuma-se até ao vómito  
e cheiram-se as flores  
como se o início do mundo.

Cláudia R. Sampaio. A Primeira Urina da Manhã. Lisboa: Douda Correria, 2015.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Adeus a isso tudo

Primeiro, trenós e carruagens, felizes por zarpar, e rolamentos. Depois mares, banheiras, alambiques. Gravatas, botões de punho, chapéus de senhora. «Também as minhas botas, tão doces companheiras, tão prontas a furar fronteiras?» Também as suas botas, senhor Severo. A seguir semáforos, fogos de artifício, retinas, tudo o que envolve luz. Salmos, aulas de carpintaria, senha e contra-senha.

José Luís Costa. Canto da Alforreca. Lisboa: Douda Correria, 2016.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Prefácio Sumário - Ricardo Domeneck

Não sou pago para ajudá-la

ainda que nunca esteja em bai-

xa o mercado das ilusões- Este é um livro

de auto-estorvo. Para bom entendedor. buraco de

O é letra. O abismo não tem olhos. Foque-se. O

cosmo vira a cara para as cenas constrangedoras

deste planeta que está, já sabemos, na periferia da

galáxia. Os seus dramas de subúrbio e já deve-

ria estar claro e evidente, querida, que os

deuses estão cagando e andando.

Ricardo Domeneck. Manual para Melodrama. Lisboa: Douda Correria, 2016.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Dentro do Meu Peito Você Pode Cultivar a Solidão o Ano Inteiro - Diego Moraes

Lembro que uma senhora trabalhava na minha casa e orava muito. Ela cozinhava orando e às vezes varria a casa lagrimando. Dona Lígia. Nunca esqueço o rosto da dona Lígia. Um rosto de compadecimento com o sofrimento alheio. Uma expressão cansada de esperança num mundo melhor. Eu liguei a televisão. e vi o avião acertando a primeira torre e depois outro detonando a segunda. Ela se ajoelhou de cara pra parede e começou a chorar. Começou a pronunciar palavras em línguas estranhas. Fiquei calado. Acho que a fé da dona Lígia me deixava sem palavras. Sem ter o que dizer. Todos os canais de noticias temiam uma terceira guerra mundial e resolvi me trancar e orar também. Não me ajoelhei. Sentei a bunda na beira da cama e comecei a visualizar com força um mundo melhor. O tempo passou. […]

Diego Moraes. Dentro do Meu Peito Você Pode Cultivar a Solidão o Ano Inteiro. Lisboa: Douda Correria, 2017. 

segunda-feira, 2 de março de 2015

Um poema tenrinho pode ser - Nuno Moura

Um poema tenrinho pode ser
quando tu morreres vou tirar a carta
ou
o mosteiro dos pulmões ataca uma barriga sem grades
e nasce uma quantidade razoável de imagens
indo da agulha de cintilo
aos dentes de um morcego beija-mão.

mas pode ser escrever chamar otários
sabrões
zarpos
garôlos
altos comissários
nas paredes para as ruas
das garagens-oficina nova era automóvel.

mas pode ser amor drógádo
síque
não presta.

mas pode ser tão difícil.
mas pode ser
liga à tua antiga madrinha-de-guerra
vai ter com ela saca-a ao marido
mexe com esta merda
pá.


Nuno Moura
(n.1970)
poetas sem qualidades
Averno
 
Retirado daqui.