segunda-feira, 12 de março de 2012

Memória

não é que propriamente
me sinta errado,
mas o sentimento é estranho
aceno que sim
porque sim
a cabeça faz bem aquele movimento

são ainda reveladas
de um rolo antigo
as tuas fotografias
como se quisessem mesmo contar
uma história - as imagens ligadas umas às outras -
a película que gravou aquele instante

mas não conheço os sítios nem as pessoas
só sei que
há felicidade ali, naquela imagem
e a demasiado óbvia nostalgia
de quem salta entre oceanos

da minha parte
ou melhor, da minha infância
sujei-me muito e fiz sujar outros
mesmo quando achava que procedia mal
e saltava muros e quintais

e enganava-me frequentemente
pensando como era bom
poder estar assim
para sempre

mas sabia que não ia ser assim
portanto, calculo que saibas como me
sinto se não percebo a dimensão
de uma sala ou de um quarto
ou de brinquedos ditos
numa outra língua
que eu entendo,
mas que me é estranha

nunca vi neve
e a paisagem é diferente
é natural que o meu coração
pule e se engane
e guarde o sangue
desejando também ter estado ali

mas não estive
não é que faça a diferença
só torna ainda mais enigmático
a forma como compreendo
o que me explicas

aguardas a resposta
e eu digo que sim
há memórias
boas, de coisas que se guardam

e outras que não descolam
da pele

são diferentes as casas que habitamos
guardam objectos
e mobílias estranhas
com gavetas cheias de segredos

e se o silêncio por vezes
não chega
fechamos as portas e seguimos
em frente
selando-as indeterminadamente
até que o branco da cal ou o azul
do mar
nos traiga do esquecimento

ficando assim
a olhar o que podia ser eterno
e não é
o que foi guardado no passado
e não pode ser presente

essa matéria dos anos
que engana os homens

falas
eu continuo a dizer que sim
e respiro fundo

viras a cara
sei que sentes exactamente
o mesmo quando te digo
que já dormi ali.


Da série Biografia não oficial
(A sair um dia destes)

José Duarte

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