Porque falta meia hora antes de
tomar o comprimido para dormir,
porque mesmo depois de tanto tempo
fazes de mi o filho com síndroma de Down
de Arthur Miller,
porque escrever não é só abrir cabeças
com o bisturi de Lacan,
e porque um poema não é a Isabella Rossellini
a chorar todos os sábados à noite,
nem o casal encontrado abraçado
na paralisia bucal do Vesúvio.
Porque a poesia não é a ponte Mirabeau
num cartaz de néon da adolescência,
porque hoje, quando ligaste,
era apenas porque te tinhas enganado no número,
porque estou cansado, voilà,
e não consigo evitar a noite,
penso agora em ti, Juliana,
heroína no sentido naturalista do termo,
penso sobretudo no teu arzinho
de provocação e de ataque.
Podias ter sido a Maria Eduarda
do cinema norte-americano,
a rapariga que ajudou a pôr fim à guerra em Vietname,
a Frida Kahlo e o Kofi Annan,
a estátua de Notre Dame.
O teu sentido reformista,
o teu olhar de Eça socialista,
cá está,
tinhas cabeças para embaixadora da boa vontade,
pés para andar nos corredores da ONU,
o feitio da botina, a mania, a despesa.
Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido,
de cara para a parede
enquanto 20 repúblicas foram perpetuando
campanhas eleitorais e golpes de estado
nos jornais com os quais limpas os vidros da cozinha.
Coitada, coitadinha, coitadíssima,
permaneces na sala, um pouco pálida e fraca,
mas restituída aos deveres domésticos e aos prazeres da sociedade!
O feitio da botina, a mania, a despesa,
o cheiro a terebintina,
Ó Juliana Couceiro Tavira, per omnia saecula,
chega paracá a garrafa e o cinzeiro;
temos assuntos por tratar e meia hora de créditos.
Golgona Anghel
in Vim Porque Me Pagavam (Lisboa: Mariposa Azul, 2011)
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