A cidade movia-se como um barco. Não. Talvez o chão se abrisse em
algum lado. Não. Era a tontura. A despedida. Não. A cidade talvez fosse de
água. Como sobreviver a uma cidade líquida?
(Eu tentava sustentar-me como um
barco.)
As aves molhavam-se contra as torres. Tudo evaporava: os sinos, os
relógios, os gatos, o solo. Apodreciam os cabelos, o olhar. Havia peixes
imóveis na soleira das portas. Sólidos mastros que seguravam as paredes das
coisas. Os marinheiros invadiam as tabernas. Riam alto do alto dos navios.
Rompiam a entrada dos lugares. As pessoas pescavam dentro de casa. Dormiam em
plataformas finíssimas, como jangadas. A náusea e o frio arroxeavam-lhes os
lábios. Não viam. Amavam depressa ao entardecer. Era o medo da morte. A cidade
parecia de cristal. Movia-se com as marés. Era um espelho de outras cidades
costeiras. Quando se aproximava, inundava os edifícios, as ruas.
Acrescentava-se ao mundo. Naufragava-o. Os habitantes que a viam aproximar-se
ficavam perplexos a olhá-la, a olhar-se. Morriam de vaidade e de falta de ar.
Os que eram arrastados agarravam-se ao que restava do interior das casas.
Sentiam-se culpados. Temiam o castigo. Tantas vezes desejaram soltar as cordas
da cidade. Agora partiam com ela dentro de uma cidade líquida.
(Eu ficara exactamente
no lugar de onde saiu.)
Filipa Leal, A Cidade Líquida e Outras Histórias, 2006
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