quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Ben Zhakai - Tatiana Faia


três da manhã em budapeste
no piso subterrâneo de um hotel
um homem e uma mulher
deixam-se ir ficando para a privacidade
suburbana de um parque de estacionamento 
dentro do carro conversam
como quem joga xadrez
sacrificando peça após peça
com uma atenção metódica
indício talvez de um punhado
de critérios mais sábios 
eles lembram-te de outra história de rabis
ben zakhai negociou habilmente sobre jerusalém
preparou em desespero o render da cidade
ele e o imperador tinham conversas de planos
entretiveram com tacto grave
discussões de sucessivas estratégias 
mas por enigmas desencontrados
cada um deles reclamava ainda outra coisa 
já que há tudo a perder mais vale
querer cada vez mais, imagina que 
ben zakhai talvez tenha dito a vespasiano
uma destruição esconde sempre
outra destruição e a destruição seguinte outra
até não sobrar nenhuma casa
tu daqui vais para roma e eu sabe deus 
e não há-de haver já nada
dentro de nenhuma das casas nesta cidade
contidas como soldados demasiado jovens
escondendo-se ao perceber o primeiro dever do medo,
o de se enterrarem no refúgio circular das muralhas 
nada das coisas que compõem uma cidade
o nosso comércio o discreto barulho
das nossas mulheres no seu ir e vir
coisa calada de com os filhos pelas mãos 
as intactas paredes das nossas casas
o recolhimento sossegado pela tarde
da sombra dos nossos pátios mais interiores
o sussurrar na fala grave de homens
entretidos em conversas de negócios
nada, não há aqui metáfora nenhuma 
começando por uma coisa qualquer
é possível
se assim quiseres
continuar a partir tudo indefinidamente
tudo pode ser minuciosamente destruído 
contra esta mais espessa noite
a ideia de um nó tão fundo que só isso explique
uma cidade inteira calcinada
para que a mesma cidade possa recomeçar
Teatro de Rua, do lado esquerdo, 2013
Retirado daqui

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Unspoken Eulogy for Tía Cucha - Richard Blanco


I arrive with a box of guava pastelitos,
a dozen red carnations, and a handful
of memories at her door: the half-moons
of her French-manicures, how she spoke
blowing out cigarette smoke, her words
leaving her mouth as ghosts, the music
of her nicknames: Cucha, Cuchita, Pucha.
I kiss her hello and she slaps me hard
across my arm: ¡Cabrón! Too handsome
to visit your Tía, eh? She laughs, pulls me
inside her efficiency, a place I thought
I had forgotten, comes back to life
with wafts of Jean Naté and Pine Sol,
the same calendar from Farmacia Galiano
with scenes of Old Havana on the wall,
the same peppermints in a crystal dish.
And her, wearing a papery housecoat,
sneakers with panty hose, like she wore
those summer mornings she'd walk me
down to the beach along First Street,
past the washed out pinks and blues
of the Art Deco hotels like old toys.
The retirees lined across the verandas
like seagulls peering into the horizon,
the mango popsicles from the bodeguita
and the pier she told me was once
a bridge to Cuba—have all vanished.
  
I ask how she's feeling, but we agree
not to talk about that today, though
we both know why I have come
to see her: in a few months, maybe
weeks, her lungs will fill up again,
her heart will stop for good. She too
will vanish, except what I remember,
of her, this afternoon: sharing a pastelito,
over a café she sweetens with Equal
at her dinette table crowded with boxes
of low-salt saltines and fibery cereals.
Under the watch of Holy Jesus' heart
burning on the wall, we gossip about
the secret crush she had on my father
once, she counts exactly how many
years and months since she left Cuba
and her mother forever, we complain
about the wars, diseases, fires blazing
on the mid-day news as she dunks
the flowers in a tumbler—a dozen red
suns burst in the sapphire sky framed
in the window, sitting by the table.

Richard Blanco, Place of Mind, Floating Wolf Quarterly Chapbook, 2011.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

heart skipped a beat

Até o telemóvel se recusou
a eliminar de uma assentada o teu
nome. Tive de apagar, passo a passo,
linha a linha, todos os teus dados 
pessoais. Sábado de manhã e era curioso ser
no mesmo dia em que te telefonei para 
saber como estavas: à rasca de dinheiro,
como sempre. Disse que te emprestava, 
melhor, que te dava uns euros, fazendo
nota mental de que esta seria
a última vez que o fazia. E naquele dia ouvi 
a tua voz pela última vez. Nunca saberei 
se quando caíste ias levantar o dinheiro 
que tinha depositado na conta: o cartão no bolso
da camisa, juntamente com outros papéis.
Se soubesse não te teria emprestado o
dinheiro. Mas a tua voz impediu-me
de o fazer. Entre a cozinha e o quarto,
descalço, semi-nu, desgraçado, a camisa
com o cartão de um lado e, do outro, as
pernas frias. Hoje sei que se te quisesse
telefonar apenas ouviria o voice-mail
para deixar uma última mensagem,
algo que nunca tive oportunidade de
fazer. O bip incessante impõe a sua
oca presença e a tua ausência, por isso
preferi apagar o teu nome, o teu número
e outros dados mais insignificantes, na certeza
de que, agora, não precisarás que te empreste
mais dinheiro.

José Duarte, série Biografia não oficial.




quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Juan Gelman (1930-2014)


Escribo en el olvido...
Escribo en el olvido
en cada fuego de la noche
cada rostro de ti.
Hay una piedra entonces
donde te acuesto mía,
ninguno la conoce,
he fundado pueblos en tu dulzura,
he sufrido esas cosas,
eres fuera de mí,
me perteneces extranjera.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Poema para um pássaro que o Luis Manuel Gaspar não pintou - Hélder Moura Pereira

Morreu-me entre as duas mãos o pássaro
vadio, era o meu peixe azul num aquário,
o fanatismo de ser de um clube, o meu ídolo
com as suas pequenas patas de barro.
Visitava-me muitas vezes, cheguei a crer
que era mais do que um, mas não, era
sempre o mesmo, o meu pássaro com asas
de um negro radioso, talvez não fosse negro,
talvez fosse às riscas, mas o bico, esse
era amarelo torrado e nunca há-de haver outro
como ele. Não lhe dei de comer, porque ele
não precisava, ele desenvencilhou-se sozinho,
acompanhou-me na velhice dos dois sem nada
exigir e agora, de asas caídas e patas trémulas,
veio morrer às minhas mãos o meu amigo.


Hélder Moura Pereira, Pela parte que me toca. Assírio & Alvim, 2013.

Retirado daqui.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Dear Reader

Baudelaire considers you his brother, and Fielding calls out to you every few paragraphs as if to make sure you have not closed the book, and now I am summoning you up again, attentive ghost, dark silent figure standing in the doorway of these words. 

Billy Collins

sábado, 4 de janeiro de 2014

Um poema de Bénédict Houart

falou-me com duas pedras na mão
eu atirei-lhas de volta
por pouco não lhe rachei a cabeça
parti o vidro duma montra
ficou parecida com uma teia de aranha
chovesse, então, era uma maravilha
veio um polícia e levou-me
bem lhe expliquei a situação
visivelmente não compreendeu
que uma metáfora por vezes
tem consequências pouco legais
multou-me e aconselhou-me
a não reincidir
coisa que fiz logo de seguida


Aluimentos, Cotovia, 2009.