terça-feira, 19 de maio de 2015

[Infâmia] Beatriz Hierro-Lopez

A vadiagem de sino na mão, garrafa cortada e olhos cegos, tronco seco e polido com que bate compassivamente no chão, marcando tempos aos olhares que se desviam ou se fixam nesta marcha de miséria entre vagões no subterrâneo. De olhos fechados, cega vadia, cão vadio, latindo língua de sino, a mais fiel Portuguesa de há quantos séculos: o que deveríamos ter por hino à glória de uma nação enfileirada numa procissão de pernetas, manetas, cegos ou cancerosos, pedintes ou calados. Aos que não se enfileiram: este vagão é sala de espera, e sem que alguém saiba, carrilhão de pequeníssimos gestos, vozes cruas que, no trajecto, curvarão cabeça, corpo e dedos, baloiçando primaveras, verões inteiros entre as margens dos dentes, sem pão que haja além destas palavras de cobre dando pressa ao vagar de deus oculto em cada sinal de emergência. Trago ao peito medalha de prata, sino encabeçado por três rostos de asas pequenas; tenho a língua do ferro, e talvez por isso, talvez só por isso, saiba do cobre e da diferença multicolor entre este e a ferrugem dos ponteiros que ancoram passados à minha boca: o teu, o meu, o nosso. Sou vadia e o mesmo é dizer que nasci do fundo do mar onde naufrágios sepultam o progresso de outras vontades. Não tenho hino, glória ou fidelidade. E se tenho por língua esta língua, é dela o toque, a vibração contra a emergência de haver quem nos salve deste infame orgulho de ser português.
 
[Espartilho]. Coimbra: Debout Sur L’Oeuf, 2015. Retirado daqui e disponível aqui

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