quarta-feira, 3 de junho de 2015

Descrição da Cidade de Lisboa - Matilde Campilho

A rapariga a pensar naquilo, a rapariga ao sol, menina a comer cachorro 
quente, menina a dançar na rua, rapariga do dedo no olho, do dedo na árvore. 
Rapariga de braços levantados, rapariga de pés baixos, rapariga a roer as
unhas, rapariga a ler jornal, rapariga a beber um líquido chardonnay, rapariga
no vão de escada, rapariga a levar na cara. Rapariga aflita, rapariga solta, 
rapariga abraçada, rapariga precisada. Rapariga a fumar charuto, rapariga a ler 
Forster, rapariga encostada na palmeira, rapariga a tocar piano. Rapariga 
sentada em Mercúrio ao lado de um leão, rapariga a ouvir discurso de Ghandi, 
rapariguinha do shopping. Rapariga feita de átomos e sombra. Rapariga de um 
ponto ao outro e medindo quarenta e dois centímetros, rapariga impávida, 
rapariga serena. Rapariga apaixonada por igreja quinhentista, rapariga na moto
a trocar velocidades a mudar o jeito. Rapariga que oferece à visão o hábito da 
escuridão e depois logo se vê. Rapariga de ossos partidos, rapariga de óculos 
negros, rapariga de camisola em poliéster, rapariga debruçada na cadeira da 
frente no cinema, rapariga a querer ser Antonioni. Rapariga estável, rapariga de 
mentira, rapariga a tomar café em copo de plástico, rapariga orgulhosa, rapariga 
na proa da nau africana. A rapariga a cair no chão, rapariga de pó na cara, 
rapariga abstémia, rapariga evolucionista. Rapariga de rosto cortado pela faca 
de Alfama, rapariga a fugir de compromissos, rapariga a mandar o talhante à 
merda, rapariga a assobiar, rapariga meio louca. Rapariga a deslizar manteiga 
no pão, rapariga a coçar um cotovelo, rapariga de cabelo azul. Rapariga a 
brincar com um isqueiro no bolso, rapariga a brincar com um revólver nas 
calças, rapariga a nadar, rapariga molhada, rapariga a pedir uma chance só 
mais uma ao santo da cidade. Rapariga a ostentar decote no inverno, rapariga a 
olhar pelo canto do olho esquerdo, rapariga a ser homem, rapariga na cama. 
Rapariga a subir o volume, rapariga a querer ser Dylan, rapariga a cuspir no 
chão. A rapariga a girar a girar a girar a girar no eixo de uma saia de seda 
amarela. Amarela da cor de um feixe de luz apanhado numa esquina.

Matilde Campilho. Jóquei. Lisboa: Tina da China, 2014.


Sem comentários:

Enviar um comentário