domingo, 31 de janeiro de 2016

Avô Amaro - Margarida Vale de Gato



Quando o homem pisou a lua no café do meu avô


eu não estava lá [escrevi sobre isto antes por outra


causa mas (montagem, conspiração, solas ufanas de improváveis


galochas de lustro astronómico arrastando um pé retocado


pelo ângulo do vento bafejando ouro azul rubro e branco


e pura Americana forever) nem sempre há-de ser o mesmo 


poema; neste o tema serve o desenho de quem era o meu avô:


ele tinha um café e um televisor ainda raro na altura, caixa


cúbica que todos convocou em torno ao espaço, só eu não;


eu era ainda para nascer e por isso lamento quando chegou


o primeiro homem à lua eu não estava lá] em Vendas Novas





e o café ficava em frente ao quartel e os mancebos


treinavam para ir matar no ultramar por causa do senhor


que julgava ainda governar Portugal mas também não esteve


lá e se calhar nem viu nada se calhar nem ouviu se calhar


nem deu por nada mesmo supondo um rouco transístor


seguro pela débil mão junto ao débil coração o enfermo 


na cadeira de onde já tinha caído sem ter percebido


nada desconhecendo os mancebos e estes em paga


ignorando por uma vez tudo dele todos olhos e reparo


todos postos no futuro todos sôfregos na respiração 


de Neil Amrstrong lá longe na lua na televisão do Amaro





preto no branco o dominó em tampo de mármore em câmara


lenta derrubado passado tempo guerra regime ó leve coração


efémero o meu avô no meio do café a serradura era neve 


de botas cardadas na lua que ele limpou quando voltou


a tropa ao quartel de fantasia em forma ele só atencioso 


ele desperto afã de cuidar de varrer como sempre fazia 


ele pepitas semi-acesas eram estrelas fabulosas da alegria 


eu não estava lá nem estive quando anos após (eu tinha


dezoito) o coração dele parou eu soube como um soco 


a primeira vez que alguém morria a lua não tremeu não se via 


o meu avô pela sua fé sem qualquer tecnologia tornou ao céu


Margarida Vale de Gato. Retirado daqui.

Sem comentários:

Enviar um comentário