terça-feira, 26 de setembro de 2017

Um poema de Siringe (2017) - Rosa Maria Martelo


A seringa recolhe, transporta, inocula.
Mais perto do pânico da ninfa fugitiva,
o inglês tem a palavra syringe. Cânulas, canas,
Syrinx em fuga na margem do rio, mudada
na forma dos caniços, nas canas ligadas da flauta de Pã.
Mas há outra siringe, um órgão de tubos
na garganta das aves. Dizem que encerra afinidades
com os sons em volta e reproduz as frequências ouvidas,
que as refaz por simpatia.
O mesmo pathos, quer dizer, um mimeógrafo
sonoro à entrada dos pulmões; túnel onde passa o ar,
o sangue, vento; alguma coisa das nuvens.

Rosa Maria Martelo. Siringe. Lisboa: Averno, 2017.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Cob - Fiona Sampson

 Cob

The way we used to live
in the old house a house
whose thick walls curved like the living
flanks of beasts


do you remember curving walls
the deep-set windows like
a kind of hope their light
white as the whitewashed walls


that someone made from living
things from straw and hair
and took the teeming mud
salted with living things


in tiny constellations
which hung round us there
baked with the dreaming hair
of horses the corn stalks


that crackled underfoot
and in the hand as they
were cut the mysteries
of domesticity


are also sacrifice
each kitchen knife shining
like joy they took the mud
and baked it as you might


a loaf made from corn
because the crust of things
rises and falls like breath
in the flanks of beasts.


The Catch, Fiona Sampson, 2016.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Deslumbre

Os anos ensinaram-me que a vida é o caminho percorrido; a angústia é a ilusão de terem existido outras possibilidades. Quando entramos na adolescência, é quando se constrói essa ilusão. É, como se de um momento para o outro, uma vasta ignorância fosse abalada por um sismo de grande intensidade e os muros caíssem, revelando inúmeros caminhos. Mas na verdade ainda somos crianças; a consciência de nós é vaga, se não rara. Quando damos por isso, estamos a arder de desejo, de cobiça, de ressentimento, de raiva. 

João Tordo. O Deslumbre de Cecilia Fluss. Lisboa: Companhia das Letras, 2017.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Calotes Suspensas - Rosalina Marshall

numa cama
enquanto lá fora chilreavam pássaros
coloquei os dedos na jugular
precipício
sobre um jardim
onde nunca mais
se teme a morte


Manucure, Companhia das Ilhas, 2013.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Peleas Domésticas - Frank Baéz

Mientras escribo en el papel
a las tres de la mañana
una musa me escupe la cara
otra musa me grita
una me trae vodka
y me susurra no escribas
me trae drogas
me trae modelos de revistas
no escribas no escribas
repiten al unísono
día y noche
noche y día.


Frank Baéz