terça-feira, 10 de abril de 2018

Estrada Nacional - Rui Lage

EN212

Da infração mais grave não sei:
deixar que mãos ausentes me conduzam
a sentidos proibidos
ou que falsos deuses do amor me desmandem
entre acidente e contigente.

Cumpra a brigada de trânsito a sua missão:
cace-me a carta
onde se obstina a tua fotografia,
reboque-me a carcaça sinistrada
ou de castigo me leve a carripana
e me deixe apeado na valeta, pois
de infracção mais grave não sei:
conduzir fora de mão
conduzir contra o coração.

EN2

Escavo as trevas à força de faróis:
aponto à estrada florestal
esses dois minúsculos sóis
com que inauguro galerias provisórias
claustros, arcadas, naves arbóreas, 
e de halos breves conjuro cancelas,
muros velhos, veredas, levadas.

O seu clarão torna visível o invisível,
traz coisas para a existência:
marcos quilométricos, apeadeiros,
serrações assombradas,
pilares de pesadelos que suspendem sobre os vales
absurdos viadutos aéreos. 

Com faróis ilumino porque não tenho luz própria:
cego viajo, como a traça, 
às voltas, às voltas,
tão negro como a noite que lá fora me cerca,
peixe dos abismos, toupeira,
cometa.

Rui Lage. Estrada Nacional. Lisboa: INCM, 2016.

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