Vista do Castelo de Mumbles, em Swansea
Seguimos primeiro de Lisboa a Londres, duas horas e meia
de viagem aproximadamente. Nunca consigo sentir-me confortável num avião. Há
sempre uma sensação de queda inevitável, por isso controlo a minha respiração e
evito movimentos bruscos. Heathrow é um labirinto cujo tamanho nunca irei
conseguir compreender, colorida apenas pelos famosos sinais que indicam o metro.
A estação de autocarros logo ao lado é composta por uma
sala central onde pessoas de todas as cores circulam ou estão sentadas. Uns
aproveitam para ler antes de partir, outros comem as habituais sandes, sempre
mirando o grande relógio que anuncia as horas e que controla as chegadas e as
partidas.
Quando entro no autocarro relembro que a condução é feita
do outro lado, coisa que calculo nunca conseguir fazer. O espaço entre bancos é
mais do que suficiente, mesmo para quem tem as pernas grandes e os assentos são
especialmente confortáveis. Consigo dormir durante alguns minutos apenas para
acordar num veículo que, dada a minha desorientação, parece conduzir-se a si
mesmo. Levo algum tempo a perceber que o condutor está do outro lado.
Chegámos a Swansea quatro horas depois e umas quantas
cidades. Embora viesse acordado durante a maior parte da viagem, lembro-me
apenas de Bristol, dada a sua importância e da entrada no País de Gales,
Cardiff e, finalmente, da chegada ao nosso destino. A cidade, com cerca de 450
mil habitantes, fica junto ao mar. As gaivotas sobrevoam os edifícios cor de
tijolo e cinzento e, todos os dias de manhã, impedem-me de continuar a dormir. Às
vezes chegam a pousar no telhado da residência onde fica o meu quarto.
Sempre que chove as ruas inclinadas tornam-se ainda mais
difíceis de subir e, a meio caminho, o sol pode aparecer sem avisar. Hoje, por
exemplo, o sol decidiu mostrar-se pelo menos até as nuvens combinarem uma
conspiração silenciosa que influenciará a cor da cidade.
No dia seguinte, o sol decidiu impor a sua teimosia e
ficar, mesmo que o vento ameaçasse permanecer junto aos nossos ouvidos. Creio
que se fechasse os olhos talvez conseguisse ouvir segredos profundos vindo do
mar trazidos através das ruas da cidade. Aqui, todas as placas estão em duas línguas,
um claro sinal do sentimento nacionalista que é partilhado por todos os
habitantes deste país, creio.
Ontem fizemos um passeio guiado pela cidade, percorrendo
os locais que Dylan Thomas frequentou antes de partir para a sua última viagem
a New York, onde viria a morrer, depois de instalado no famoso Chelsea Hotel.
Na minha cabeça ecoa a popular canção de Leonard Cohen “Chelsea Hotel # 2”,
hotel por onde passaram vários artistas conhecidos, incluindo Janis Joplin que
lá viria a falecer, tema principal da canção de Cohen. Patti Smith escreve, mais
tarde, um excelente livro sobre o seu companheiro Robert Mapplethorpe
intitulado Just Kids onde relata a
maior parte destes eventos durante o tempo em que ocupou um dos quartos do
hotel.
Estátua de Dylan Thomas na marina de Swansea
Nos seus últimos dias de vida Dylan Thomas transitava
entre o hotel e as suas famosas leituras públicas, com aquela voz grave, e uma
presença imponente. Do que apurei não existem registos audiovisuais de Dyaln em
lado nenhum. Estivemos mais de uma hora na casa onde residiu durante 23 anos,
que agora é uma espécie de museu, mas também é mais do que isso. Quem quiser
pode marcar sessões de poesia, pequenas tertúlias ou até mesmo alugar a casa
para dormir durante uns dias. O guia contou-nos pequenas histórias e
mostrou-nos as divisões da casa: três quartos, uma cozinha, uma casa de banho
bastante grande para a altura e uma sala comum onde decorrem, por vezes, as sessões
de leitura.
Placa colocada na parede da casa onde Thomas nasceu
A casa é composta de um silêncio que não incomoda
propriamente. Antes pelo contrário, fascina. Quase que conseguimos imaginar o
poeta sentado na cadeira do seu minúsculo quarto a tentar compor os versos que
escrevia e reescrevia até conseguir afinar o poema conforme pretendia. Diz-se
que redigia todos os seus poemas à mão e, caso tivesse de efectuar alguma
alteração, voltava a escrever o poema desde o princípio. Talvez por isso
existam dezenas e centenas de versões do mesmo poema.
Imagens da casa de Dylan Thomas
Fiquei impressionado com a aura daquela habitação,
especialmente quando o guia, durante alguns segundos, colocou um disco a tocar
numa antiga grafonola, mostrando como os sons do passado são poderosos. Também
foi ali que ficámos a saber que o local onde estávamos alojados foi o mesmo
onde o poeta residiu no seu tempo de estudante. A desorientação habitual só me
permitiu reparar na placa que anunciava esse momento muito mais tarde.
Pergunto-me se, talvez, não seja esse o segredo que as gaivotas insistem em
partilhar comigo todos os dias de manhã.
Swansea é pequena e parece unicamente ter Dylan Thomas
como o seu grande trunfo. Se calhar é só isso que necessitam: as palavras de um
poderoso poeta que morreu cedo demais. Por vezes consigo encontrar outros
encantos para além da poesia, o mar, os barcos, a marina, o sol que, de quando
em quando, brilha.
Num dos dias viajámos a Cardiff, a capital do País de
Gales e uma cidade com uma dimensão cultural maior que Swansea. Cardiff parece
ter outra cor em relação a Swansea, mas a mesma imprevisibilidade temporal.
Quando se irrita faz chover e só não faz diferença a quem vive naquela cidade.
O castelo é um dos grandes locais de atracção da capital.
Fascinou-me particularmente a história daquela cidade com a II Grande Guerra.
Se Swansea sofreu com o Blitz alemão não o parece revelar, embora grande parte
da zona da marina tivesse de ser reconstruída. Cardiff por sua vez, e em
particular no castelo, esconde os túneis onde os habitantes se protegiam dos
bombardeamentos alemães. Os vários quadros pendurados na parede do longo túnel
mostravam a realidade daquele tempo de crise em que, os bens que assumimos como
adquiridos, se tornam mais do que preciosos. Para além de salvar vidas era
crucial guardar batatas e pão, alimentos que sustentavam os quase 1300 corpos
que se resguardavam em silêncio dos enormes clarões.
Castelo de Cardiff
O que fazer em caso de ataque. Um quadro que estava no túnel
Ao mesmo tempo Cardiff aposta numa maior dimensão cultural. O museu
principal da cidade esconde belas pinturas e estátuas de reconhecidos
escultores. Nas ruas as flores frescas parecem ser uma parte natural da
paisagem. Os pubs continuam a ser a minha maior fonte de admiração. Comer num
pub é sempre uma actividade interessante. Para além de serem locais que contam
uma história alternativa da cidade – os segredos, os amores e desamores, as
confissões necessárias dos arrufos domésticos sob o efeito de álcool – exercem
sobre nós um fascínio que ainda não consigo explicar em palavras, especialmente
depois da excelente refeição que tivemos ali. A noite de Cardiff é agitada. A
noite de Swansea, percebi no regresso, divide-se entre a mesma agitação e um certo
silêncio que, se compreendido, não é incómodo.
A viagem pelo campo mostrou um país muito marcado pela
paisagem bucólica, onde residem os grandes agricultores. Em todas as cidades
festivais, em todas as povoações pequenas atracções turísticas. “Very poplar”
era a expressão utilizada pelo condutor que nos levou até Pembrokeshire e St.
Davids, o primeiro um castelo tomado apenas por Oliver Cromwell e a outra a
mais pequena povoação no Reino Unido, 1600 habitantes. No regresso, conhecemos
caminhos alternativos, estradas diferentes e, ainda assim, reconhecemos os mais
importantes locais à beira-mar.
Imagem de St. Davids
Há algo que se agita em mim quando parto. Um misto de
alívio e tristeza. Não demoro muito a acomodar-me às coisas. Gosto de alguma
mudança, mas favoreço as rotinas para que o meu corpo se mantenha em segurança.
Reconheço a mudança que a experiência fez. Na cantina de manhã estão todos ou
quase todos prontos para uma autêntica experiência britânica. O Welsh Breakfast não é muito diferente do
Scottish Breakfast experimentado em
Glasgow. A grande diferença é que o primeiro é acompanhado de mexilhão, algas e
uma salsicha com ingredientes que não consigo distinguir.
A despedida é feita de estômago completamente cheio, mas
marcada por um dos dias mais chuvosos da estadia. A descida de Mount Pleasant revela-se pouco
agradável, se bem que a subida era bem pior. Completamente encharcados, parando
sempre que possível para nos abrigarmos da chuva, conseguimos chegar à estação
de comboios. Sentado no banco dentro da carruagem F não consigo deixar de
imaginar a solidão de inverno nesta cidade. Dissemos adeus.
*
Na verdade, não dissemos adeus. Cruzámos a fronteira e
chegamos a Oxford. Confesso que houve um sentimento clandestino em mim, até
porque, durante dois dias dormimos em casa de um amigo. Oxford tem duas
dimensões: a primeira existe em larga escala, os edifícios trabalhados, os
estudantes, um certo lado místico e antigo, os pequenos jardins agregados a
cada universidade. A segunda dimensão passa por um lado mais familiar e
suburbano, mas aconchegador. À noite, ao passear pelas ruas, há um espírito que
identifico noutras cidades.
Oxford
Aproveitámos para ver Londres, cidade na qual reconheço a
importância de caminhar. Andar pela capital faz com que o corpo sinta e
incorpore a cidade, apropriando-se de um lado mais primordial e menos
turísticos. Talvez seja essa a razão pela qual, máquina em punho, nunca me
sentisse propriamente turista. Procurava pelos mesmos locais que os restantes
milhares de pessoas, falava a minha própria língua, inscrevendo a minha pátria
na paisagem londrina, mas fazia um voo raso ao invés de apressadamente retirar
bocados dos edifícios e monumentos pelos quais circulava.
Londres é imensa e, mesmo assim, ainda continuo à procura
de algo mais que ainda não encontrei: colocar os nomes no sítio certo,
situar-me na geografia emocional, minha e da cidade e, ao mesmo tempo,
camuflar-me na anatomia das ruas. Encontro a rua onde Melville viveu durante um
ano e lembro-me dos Dias de Tempestade, apagar
para lembrar, navegar é preciso.
Ao mesmo tempo, esquecer-me que não sou dali, não sou
dali. O retorno a Oxford testemunha essa minha inquietude. A carruagem onde nos
sentamos está cheia de homens de negócios engravatados. Regressam a casa depois
de um dia de trabalho. Lêem o jornal diário gratuito. Neste retrato não há nada
de diferente em relação ao meu país, mas só consigo pensar em Lisboa.
No dia seguinte a manhã anunciava mais uma despedida.
Quase 80 km depois e uma conversa completa inteiramente na nossa língua
chegámos de novo a Heathrow. Desta vez não sinto que se trate de um labirinto.
A ida para o avião é simples e rápida. Lembro o aperto de mão e o abraço à
entrada do aeroporto, algumas ideias e a possibilidade de um regresso. Em crise
pensamos em guardar o que nos é mais importante. Tudo o resto é supérfluo.
Apontam-se canhões a uma vida diferente, uma vida melhor, quem sabe uma família.
*
Do not go gentle into that
good night ecoa como hino à resistência. Devemos ficar. Devemos
resistir. Mas com quê? Como? Para quê perseguir a Baleia Branca?
O corpo viaja a uma velocidade inexplicável. Dentro do
avião oferecem-nos a horrível refeição. O corpo enlatado. A comida envolta num
plástico, pouco saborosa, picante. As bebidas salvam a viagem.
Deixamos para trás um país para chegar a outro. Partimos
de um ponto A a um ponto B, apenas para depois regressar de B para A. Há sempre
um retorno qualquer. O avião paira sobre o Tejo. A aterragem em Lisboa é uma
das mais bonitas que conheço. Sabe bem estar de volta e obedecer às regras
desta cidade. O sol intensifica-se pela tarde dentro. Lisboa tem uma cor
especial e, sem qualquer explicação, sinto-me eufórico.
Sei bem que todos os percursos são longos. Uns dias nesta
cidade amenizam a excitação inicial e dão a perceber que o clima é o mesmo:
está cada vez mais calor. Um dia a capital vai aquecer tanto que vai arder, tal
como o país. Contudo, o mau tempo é sempre uma incógnita em qualquer lugar do
mundo.
Atravessar a estrada é uma acção com pouca dificuldade
aqui. Sei de que lado vêm os carros e para que lado partem. Não há nenhuma
mensagem a avisar-nos para onde devemos olhar antes de atravessar: look this way assenta na ideia de que o
estranho ao país deve saber atravessar um caminho para evitar a sua própria
queda, mesmo quando não estamos sozinhos.
A haver uma direcção específica, uma dado que nos indique
o que fazer é esta: olhar para um dos lados. Depois olhar para o outro porque
queremos atravessar em segurança. Uma vez ultrapassado o asfalto tentaremos
escrever o nosso próprio caminho, de preferência acompanhado, como relembra
Michel Onfray (2009), no seu belíssimo livro Teoria da viagem: uma poética da geografia:
É certo que podemos viajar
sozinhos, mas com a certeza de estarmos incansavelmente connosco próprios, nos
mais ínfimos pormenores, dia e noite, nas horas faustas e nefastas. Nos
momentos felizes ou tristes, nos segundos melancólicos ou alegres, no desejo de
isolamento ou na vontade de partilhar, temos sempre de nos suportar, de aceitar
a nossa própria companhia. Nem sempre será a melhor opção.
José Duarte – 16 de Setembro de 2013
Imagem da baía de Cardiff
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