quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

2017

Música (sem ordem de preferência e sem ordem aparente):

1. The War on Drugs - A Deeper Understanding
2. Angel Olsen - Phases
3. St. Vincent - Masseduction 
4. Cigarettes After Sex - Cigarettes After Sex
5. Destroyer - Ken
6. Grizzly Bear - Painted Ruins
7. Fleet Foxes - Crack Up
8. Elbow - Little Fictions
9. The XX - I See You
10. Father John Misty - Pure Comedy
11. Mac de Marco - This Old Dog
12. Luís Severo - Luís Severo

Livros (entre poesia, ficção e não ficção)

1. There are More Beautiful Things than Beyoncé - Morgan Parker (poesia)
2. Hollywood Forever - Harmony Holiday (poesia)
3. White Sands Experiences from the Outside World - Geoff Dyer (é de 2016, mas li este ano e achei que devia contar - não-ficção)
4. Imagens Roubadas - Fernando Guerreiro (poesia/ensaio/não ficção)
5. O Deslumbre de Cecilia Fluss - João Tordo (obviamente devo aqui incluir os outros dois livros desta trilogia - O Luto de Elias Gro e O Paraíso Segundo Lars D.)
6. Falling Awake - Alice Oswald
7. M Train - Patti Smith (também só o li este ano, mas é intemporal)
8. The Girl in the Spider's Web - David Lagercrantz (o seguimento dos livros do Stieg Larsson)
9. Hotel, Os Bastidores - Inês Brasão (não ficção)
10. A Noite Imóvel - Luís Quintais (poesia) 

Filme 

1. Paterson - Jim Jarmusch
2. Good Time - Josh & Bennie Sadie
3. Aquarius - Kleber Mendonça Filho
4. Lucky - John Carrol Lynch
5. I Don't Feel at Home in This World Anymore - Macon Blair
6. Lady Bird - Greta Gerwig
7. I Am Not Your Negro - Raoul Peck
8. The Florida Project - Sean S. Baker
9. Logan: The Wolverine - James Mangold
10. The Meyerowitz Stories - Noah Bambauch
11. Win it All - Joe Swanberg


Existem muitos mais que poderia escolher...


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Queixas de um Utente - José Miguel Silva

Pago os impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizado sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço 
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta a receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas ser feliz. Seja como for,
não estou a ver o resultado nenhum.

José Miguel Silva. Ulisses Já Não Mora Aqui. Lisboa: Língua Morta, 2013.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Rui Pires Cabaral

Nenhum comboio nos leva
tão longe: uma cidade morta


vive ainda na rara canção.
Escuta as palavras que ensina


e todas as coisas que volta
a mostrar: a noite, o regresso


ao quarto emprestado,
as caves com livros


de Charing Cross Road
e o tempo lá fora


tão frio.

 Rui Pires Cabral. Ladrador. Lisboa: Averno, 2012.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

The Space - Aldo Nove

We all have tremendous
need to say or rather to write
that we no longer know what to say
nor what to write everywhere
and endlessly since silence
is the white space into which falls residue
the meaning in excess but so much,
too much present and everywhere.

What remains of the world
is prose that rankles expressing
its own syntax
only or not even.

It is this normal scare.

Aldo Nove. Addio mio Novecento. Einaudi, 2014.
Poema retirado da antologia Italian Contemporay Poets, editada por Franco Buffoni.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Joaquim Manuel Magalhães

Poucas vezes a beleza terá sido tanta
como no lustro preto dos sacos de lixo
à porta dos hotéis, dos armazéns, das casas de comida
nas mais pequenas horas da noite em Londres.
Estão amontoados fechando o esterco,
os lençóis com sangue, os restos apodrecidos,
adesivos negros que parecem afagos.
Os homens ao lançá-los nas fornalhas
são erguidos a imaginações malditas,
à feroz acção de deuses nos vulcões,
ao odor sacrílego de alquimistas mortos.
Ir na luz eléctrica e ver esses maços de treva,
essa cor quase molhada dos plásticos
a parecer verniz, a parecer chamar-nos,
a dar-nos o sebo como se fosse a arte,
tem um fervor que finda o pequeno mal, a vida.

Joaquim Manuel Magalhães. Consequência do Lugar (2001).

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O Avô disse ao gato - Catarina Nunes de Almeida

O poema não é uma asa-delta com um poema
não se levanta voo com um poema somos bem capazes
de nem ir a lado nenhum.


O poema é apenas uma forma delicada
de um homem se despenhar
sobre os destroços de um outro homem.


Catarina Nunes de Almeida. O Dom da Palavra. Lisboa: Não Edições, 2016.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

"Still Life With Lost Cosmonaut" - John Burnside

If I imagine you dead, there is no love
immense enough to bring you back to earth;
but here, in this bowl of apples, on this kitchen
table, gold
and crimson in a space
that could not be more ample or precise
I see you drifting in the selfsame light
that I inhabit, wishing not
to occupy, or slip loose, or possess,
life being more to me than I could ever
wish for, colour, shape, the subtleties
of shade, and when I bite into the fruit,
the taste of it, much more than I could
wish for; though I wish you could be here.


John Burnside. Still Life With Feeding Snake. London: Jonathan Cape, 2017.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Teseu sem o Minotauro - Vítor Nogueira


Como em qualquer labirinto, estas esquinas
apenas garantem que não há certezas
na direcção do futuro. Lisboa
nunca foi como em tempos a sonhei.

E contudo venho aqui em peregrinação
habitual, sem tão-pouco saber que lhe pedir.
Indecisões da fé e da sua alavanca diminuta,
à qual desmesuradamente chamamos coração.


Retirado daqui.

Bagagem de mão.  Lisboa: & etc., 2007.

domingo, 29 de outubro de 2017

Hakusai - Anne Carson - Marília Garcia

A raiva é uma cadeado doloroso
mas que pode ser aberto.

Hokusai, 83 anos, 
disse, 
é hora de fazer meus leões.

Todas as manhãs
até sua morte

219 dias depois
ele desenhou
um leão.

Rajadas de vento do noroeste.

Leões balançavam
e saltavam
do alto

dos pinheiros
para as ruas

cobertas de
neve ou sei
estatelavam

sobre a cabana dele,
as patas brancas

ferindo as estrelas
ao cair.

Eu sigo desenhando
em busca
de um dia calmo,

dizia Hokusai
enquanto os leões tombavam. 

Marília Garcia. Disponível aqui.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Um poema de Elisabete Marques

BATER A PEDRA, BATER
o chão. Perpendicular

a perna do homem, fio-de-prumo,
constituindo medida e
sustento do gesto. O homem calça-terra

agora está de joelhos.
A gota do rosto
deslizando como
mínimo mar quase em queda.
Sua boca toca a lata precisa de cócacóla.

E os passantes desajeitados
acertam batentes tacões sobre o tosco fóssil desenhado.
 
Cisco. Lisboa: Mariposa Azual, 2014.

sábado, 21 de outubro de 2017

Canto I - Radu Vancu

There will be people and they will push the world further.
Today it is evening, we are building a Lego police station
and we are watching Cars.
Today the world does not deserve to be pushed further than that.

Today we have not seen the sun struggling tetanized
in the sky. It seemed it never existed.
Today God was not the concept with which
we measure our pain, as John sings.
Maybe it measured the convulsions and torture of the sun,
what do I know. For us there existed
only the slow growth of the police station
and no sun to ruin any plans
above it.

We need a Lego sun shining without alternative
above a Lego abyss. Young Lego peasants
from a Lego Galilee
taking upon them all the Lego sins and dejections.
We need Lego children singing:
“in the shadow of the Lego cross we sat down and wept.”
A Lego John Lennon singing about
Lego gods and concepts and pains.
Only then will the sun struggle happily
in convulsions. Only then will the world deserve
to be pushed on.

Today it is evening, we are building a Lego police station
and we are watching Cars. The milk
gets warm in the white tin cup.
Nothing, and this is no big talk – nothing
can push us further.

4 A.M. Domestic Cantos, 2015.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

If our place is where

If our place is where
silent contemplation among things 
needs us
saying is not knowing, it is the other
all fated path of being.
This is the gepgraphy.
This is how we stay in the world
pensive adventures of humanity,
that is how we are form
that forms blindly
in talking about itself
by vocation.

Silvia Bre, in Italian Contemporary Poets: An Anthology. Edited by Franco Buffoni. Federazione Unitaria Italiana, 2016, p. 32.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Home Wrecker - Ocean Vuong

And this is how we danced: with our mothers’
white dresses spilling from our feet, late August


turning our hands dark red. And this is how we loved:
a fifth of vodka and an afternoon in the attic, your fingers


sweeping though my hair—my hair a wildfire.
We covered our ears and your father’s tantrum turned


into heartbeats. When our lips touched the day closed
into a coffin. In the museum of the heart


there are two headless people building a burning house.
There was always the shotgun above the fireplace.


Always another hour to kill—only to beg some god
to give it back. If not the attic, the car. If not the car,


the dream. If not the boy, his clothes. If not alive,
put down the phone. Because the year is a distance


we’ve traveled in circles. Which is to say: this is how
we danced: alone in sleeping bodies. Which is to say:


This is how we loved: a knife on the tongue turning
into a tongue.


Ocean Vuong.  Retrieved from here.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Van Damme - Diego Moraes

A gente fazia faculdade de jornalismo na uninorte. Ela me dava bola. Queria sair comigo. Quem sabe namorar e ter filhos. Um dia cheguei chapado na sala e disse que van damme era melhor que godard. Ela não perdoou. O amor acabou e virou ódio. Algumas mulheres perdoam tudo, menos um bêbado falando que van damme é melhor que godard. O mais foda é que estou revendo O grande dragão branco no telecine e não mudei de opinião. Van damme é o cara. 

Diego Moraes - Retirado daqui

terça-feira, 3 de outubro de 2017

A Short Story of Falling - Alice Oswald

It is the story of the falling rain
to turn into a leaf and fall again

it is the secret of a summer shower
to steal the light and hide it in a flower

and every flower a tiny tributary
that from the ground flows green and momentary

is one of water's wishes and this tale
hangs in a seed-head smaller than my thumbnail

if only I a passerby could pass
as clear as water through a plume of grass

to find the sunlight hidden at the tip
turning to seed a kind of lifting rain drip

then I might know like water how to balance
the weight of hope against the light of patience

water which is so raw so earthy-strong
and lurks in cast-iron tanks and leaks along

drawn under gravity towards my tongue
to cool and fill the pipe-work of this song

which is the story of the falling rain
that rises to the light and falls again

Alice Oswald. Falling Awake. W.W. Norton & Company, 2016. 

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Um poema de Siringe (2017) - Rosa Maria Martelo


A seringa recolhe, transporta, inocula.
Mais perto do pânico da ninfa fugitiva,
o inglês tem a palavra syringe. Cânulas, canas,
Syrinx em fuga na margem do rio, mudada
na forma dos caniços, nas canas ligadas da flauta de Pã.
Mas há outra siringe, um órgão de tubos
na garganta das aves. Dizem que encerra afinidades
com os sons em volta e reproduz as frequências ouvidas,
que as refaz por simpatia.
O mesmo pathos, quer dizer, um mimeógrafo
sonoro à entrada dos pulmões; túnel onde passa o ar,
o sangue, vento; alguma coisa das nuvens.

Rosa Maria Martelo. Siringe. Lisboa: Averno, 2017.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Cob - Fiona Sampson

 Cob

The way we used to live
in the old house a house
whose thick walls curved like the living
flanks of beasts


do you remember curving walls
the deep-set windows like
a kind of hope their light
white as the whitewashed walls


that someone made from living
things from straw and hair
and took the teeming mud
salted with living things


in tiny constellations
which hung round us there
baked with the dreaming hair
of horses the corn stalks


that crackled underfoot
and in the hand as they
were cut the mysteries
of domesticity


are also sacrifice
each kitchen knife shining
like joy they took the mud
and baked it as you might


a loaf made from corn
because the crust of things
rises and falls like breath
in the flanks of beasts.


The Catch, Fiona Sampson, 2016.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Deslumbre

Os anos ensinaram-me que a vida é o caminho percorrido; a angústia é a ilusão de terem existido outras possibilidades. Quando entramos na adolescência, é quando se constrói essa ilusão. É, como se de um momento para o outro, uma vasta ignorância fosse abalada por um sismo de grande intensidade e os muros caíssem, revelando inúmeros caminhos. Mas na verdade ainda somos crianças; a consciência de nós é vaga, se não rara. Quando damos por isso, estamos a arder de desejo, de cobiça, de ressentimento, de raiva. 

João Tordo. O Deslumbre de Cecilia Fluss. Lisboa: Companhia das Letras, 2017.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Calotes Suspensas - Rosalina Marshall

numa cama
enquanto lá fora chilreavam pássaros
coloquei os dedos na jugular
precipício
sobre um jardim
onde nunca mais
se teme a morte


Manucure, Companhia das Ilhas, 2013.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Peleas Domésticas - Frank Baéz

Mientras escribo en el papel
a las tres de la mañana
una musa me escupe la cara
otra musa me grita
una me trae vodka
y me susurra no escribas
me trae drogas
me trae modelos de revistas
no escribas no escribas
repiten al unísono
día y noche
noche y día.


Frank Baéz

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Geoffrey Hill - Love

XXXV 

Even now, I tell myself, there is a language   
to which I might speak and which 
would rightly hear me; 
responding with eloquence; in its turn,   
negotiating sense without insult 
given or injury taken. 
Familiar to those who already know it   
elsewhere as justice, 
it is met also in the form of silence. 

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Twitter Fiction

Geoff Dyer

I know I said that if I lived to 100 I'd not regret what happened last night. But I woke up this morning and a century had passed. Sorry.

James Meek

He said he was leaving her. "But I love you," she said. "I know," he said. "Thanks. It's what gave me the strength to love somebody else."

AM Homes

Sometimes we wonder why sorrow so heavy when happiness is like helium.

Retirado daqui.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Prefácio Sumário - Ricardo Domeneck

Não sou pago para ajudá-la

ainda que nunca esteja em bai-

xa o mercado das ilusões- Este é um livro

de auto-estorvo. Para bom entendedor. buraco de

O é letra. O abismo não tem olhos. Foque-se. O

cosmo vira a cara para as cenas constrangedoras

deste planeta que está, já sabemos, na periferia da

galáxia. Os seus dramas de subúrbio e já deve-

ria estar claro e evidente, querida, que os

deuses estão cagando e andando.

Ricardo Domeneck. Manual para Melodrama. Lisboa: Douda Correria, 2016.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Nadar na piscina dos pequenos - Golgona Anghel

Hoje, vieram buscar-me cedo.
É a tal história, tiram-me do sono,
passam-me para a maca e 
ninguém quer saber das minhas vontades.
Nem fui fazer chichi, nem me fizeram o buço.
Estou com o bordado da fronha estampado nas fuças
e, com este péssimo aspecto,
fazem-me desfilar pelos corredores cheios de gente
que acorda de madrugada
e se põe bonita para vir aqui tirar fotografias
a rins e pulmões. 
Fora a vadiagem que só entra para aquecer os pés,
estou eu, feita bicho, amarrada a uma etiqueta,
como os cavalos na feira.
Por isso, puxo com os dois braços
uma fralda que encontro por perto
e enxugo o meu rosto pejado de medo,
porque tudo isto é uma merda,
mas depois melhora um pouco
quando me enchem de morfina
e me devolvem, à saída, o telemóvel.

Nadar na Piscina dos Pequenos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2017.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Elegia cor-de-rosa - David Teles Pereira

Sou filho daqueles que lutaram no dia 25 de Abril de 1974
para que hoje eu possa ficar em casa, aborrecido, a escrever
sobre aquilo que nunca vou ser.
Não sou heróico ou talvez o seja ao meu estilo.
Sou tragicómico, sou tremendamente sensacionalista,
posso ser comprado em qualquer esquina mais ou menos escura
desta cidade de vórtices florescentes que não me viu nascer.
Sou ideologicamente marxista, muito embora nunca tenha lido Das Kapital,
muito embora todos os pares de calças que dispo a troco de algum carinho
custem muito mais que uma noite média de amor.
Não sou como Janus, mas tenho uma máscara de múltiplas faces,
pela pura diversão de iludir quem se deita ao meu lado.
E às vezes tudo isto me faz chorar lágrimas tão fáceis
de suportar como diamantes brilhantes ao pescoço de jovens
nunca tão belas quanto eu. Mas a beleza é difícil.
Sou como Eco que foi a primeira infeliz a sofrer de anorexia
por motivos amorosos. Safo não tinha razão.
Ninguém no futuro há-de pensar em mim.
Sou uma maçã madura que caiu longe da árvore.
Ainda assim, trinca-me.
O único caminho para o meu coração começa no centro
da minha boca. E, como é natural, sou sexualmente ambíguo.
Sou a parte escura de mim e é ela que brilha incomparavelmente
mais que um dia de Verão.
A solidão do meu amor é uma mecânica erótica
que reproduz em vinte e nove espasmos o óbito celestial.
Tenho as costas arranhadas e orgulho-me.
Investi nisso com as unhas afiadas e pintadas de preto.
Sou o meu próprio Basilisco quando me olho ao espelho,
quando respiro no espelho uma linha tão natural como uma árvore.
Sou a metade da romã que Perséfone comeu,
ou seja, um campo onde só nascem flores de pétalas negras.
Não procura nada quando saio de casa.
No entanto, espero que haja alguém capaz
de me aliviar da enorme tragédia do meu sonho.
Como Alexandre da Macedónia cometi o erro
de contemplar todo o meu Império demasiado cedo.
Diz-se que ele só sorriu quando Aristóteles deixou
de lhe corrigir a postura no cavalo.
Mas eu estou a sorrir mais do que nunca.
Quase três mil anos depois
Já ninguém me pode ensinar a forma unânime e
democrática de roubar a virgindade a adolescentes
que, à falta de melhor, se consideram criadores de um
verbo poético capaz de todos os sentidos.
Sou nuclear, irregular, pornográfico, luminosamente imoral.
Sou uma princesa enfadonha, demasiado esquizofrénica
para aparecer na capa das revistas. Mas eu apareço na capa
das revistas e faço-o sempre com tanta mediocridade
que nunca houve nem haverá alguém igual a mim.
Não tenho egrégios avós. Escrevo esta nova bíblia
para quem quer que seja: góticos, vegetarianos, praticantes da Cabala
sejam ou não assumidos, modelos esqueléticas,
adoradores de deuses de carne, escritores viciados em MD,
actrizes lindíssimas em reabilitação,
freiras prontinhas a assumir a aparição de Jesus Cristo entre as minhas pernas
… tanto me faz.
Eu vi CSS no Lux dia 4 de Abril de 2007 com os lábios pálidos e quietos,
como quem pretende passar a imagem de que é
demasiado irreverente para se deixar absorver pela música.
O meu sangue é da cor deste poema e este poema é um anjo neutro.
Ninguém me acompanharia ao Père Lachaise para depositar
folhas mal esquecidas no cimo da campo do poeta.
Sou o processador de textos mais ilógico da minha geração,
talvez seja o único que o faça, parente pederasta
de todos aqueles que não conseguiram fazer mais do que adaptar
Portugal ao federalismo do consumo literário.
Lá em Lisboa, lá em Lisboa tudo o que fiz foi morrer.
Nunca passou pela minha cabeça que esta cidade, tal sereia,
pudesse convencer tantos a afogarem-se nas profundezas do rio.
Não sei se hei de parar no inferno só para beber uma cerveja
ou ficar por lá uma temporada.
Só por vaidade pus o nome de Salomé à minha gata
que pariu um gato anónimo e morto.
Não tenho outra ilusão que acordar. À parte isso,
tenho em mim todos os sonhos eróticos deste mundo.
Sei de uma música que acalma as aves. Só não sei
Como tocá-la. Não faz mal, sou demasiado revolucionário
e agitador para me preocupar com isso.
Sou moderno e o mesmo é dizer que morri muito antes de ter nascido.
Rilke devia estar a pensar em mim quando escreveu
Que todo o Anjo é terrível.