sábado, 29 de setembro de 2018

Refúgio - Vítor Nogueira

Seja como for, só te podes culpar a ti mesmo.
De algum modo, sempre foste fascinado
pelas estrelas. Mas um céu nebuloso decidiu
juntar-se a ti, sombras opacas num jogo
complicado. Já não é como um vestido,
não podes espreitar por baixo. Setembro
traz consigo os dias curtos. Tens de encontrar
um refúgio, por mais pequeno que seja.


Vítor Nogueira. Segunda Voz. Lisboa: Averno, 2014.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Fim da Era - Manel Seatra


As paredes fecham-se aos intrusos, a cidade torna-se num cubo de luzes e suspiros e
as rotundas são sempre desenhadas a compasso, sem falhas de circunferência
imprecisa ou de batota nos cálculos.

Dias de Folga. Lisboa: Douda Correria, 2018.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

De Negociar e Traficar - Helga Moreira

De negociar e traficar
estou farto.
Je est un autre.

A que distância dele, disso,
em outro me tornei?
Escrevo à minha mãe.

Quantas dores, queixumes lhe envio?
Dou-lhe conta de desacertos
lucros, prejuízos.

Je est un autre.
Sempre o soube.
Acaso saberei?

Isto te queria dizer, mãe.
Perdi a vida.
Par délicatesse, par délicatesse.

Por apenas isso, pedir.
Isto te queria dizer, mãe, 
na última carta que não escrevi.

Agora que falamos de morrer, 2006.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Apareció bella y esquiva - Serdan Zelaya

Apareció bella y esquiva.
Callada también.

Era una mujer hecha de finales
sus ojos terminaban algo
sus manos con un fin inequívoco.

Nada en ella comenzaba.

Su pelo derrumbado
de besos acostados
y el desnudo agotado.

domingo, 2 de setembro de 2018

NIGHTHAWKS AT THE DINNER - Manuel de Freitas

Não sei se existe isto de que falo,
mas deixa-me reparar um pouco
no teu modo ternamente animal
de confundir palavras e sentimentos,
num quase-silêncio desabrigado e informe. 


Um corpo serve para muito pouco,
desde os caprichos da libido
às infecções urinárias. Coisas às vezes
parecidas que disfarçamos com vinho
e com uns restos de astúcia. Não me ouças,
se não quiseres. Ainda não se perdeu o lume
das mãos redondas com que te despes
a um canto, singularmente igual
ao que de ti recordo num outro Inverno
distante. Deixemo-nos ficar esta noite,
enquanto Tom Waits nos volta a falar
de um camião chamado Phantom 309
ou de outra coisa qualquer, singularmente
igual - um pouco mais triste, talvez. 
Não é isso que importa. Também cada um de nós
terá um dia de se despistar ao encontro
de alguma certeza irrisória e no entanto mortal. 


Que o vinho não acabe, entretanto, e 
que as canções não pereçam nesta noite
cativa do lume mas friamente corrupta. 
Só nos teus lábios posso encontrar os teus lábios.
Eis uma parva verdade a que por vezes regresso,
mais importante decerto do que a sagesse de Verlaine
ou do que aquele velho bar onde dantes, pelo
fim da tarde, cumpríamos o amor. Deixa lá, no exacto 
sítio da morte, essa teimosa paixão que não morre
nem finge viver. Tudo isto é inútil, embora
o empadão estivesse bom e eu já não saiba sequer
quantos anos passaram desde que um ao outro
oferecemos o engano e a miséria de um rosto. 
O vinho depressa acabou, e é entre os teus seios
que agora adormeço, como se houvesse um lugar. 


Daqui a algumas horas esperar-nos-á,
crudelíssimo, o terror tépido de mais um domingo
absolutamente dispensável. Só então saberemos
o que desta noite há-de a memória roubar. 
Talvez um perfume a doer-lhe feliz, ou as roucas
onomatopeias de uma certeza insegura
- do lado mais esquivo da morte.


Mas bastam-me para já as mãos redondas
gentis que fazem chover o teu nome
sobre as ruas desertas do meu coração. 

Manuel de Freitas, Sunny Bar. Alambique, 2015