segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Contrato Matrimonial - José Duarte


contrato matrimonial

1.

isto é o que nos resta:
o som que fica do vazio
da água a escorrer na
máquina de lavar
a roupa seca sobre a cama
ainda com o cheiro do amaciador
à qual nos agarramos, dobrando-a
respirando segredos
o que nos resta é o
olhar vago sobre o lume e as
cinzas que nos toldam o pensamento

2.

deram-nos sensações, prestações, ilusões
e, acima de tudo, juros de amor
ficaram as cidades vazias
ocas de sentido, casas abandonadas
o que resta são os passos arrastados,
os sons desafinados
de um ou outro portão que se abana
ainda com o vento

3.

cumprimos o contrato social e
o contrato matrimonial, casámo-nos e
agora queremos
o divórcio porque
o corpo não aguenta
levando consigo
todos os seus pertences
a fim de os vender

4.

isto é o que nos resta:
falar uma língua estrangeira
com cuspo na boca, aspirar
fundo o pó das acções
compreender mercados e novas
funções, a de exilado, a de
expatriado, a de conspurcado
a de quem cometeu pecados e
não sabe

5.

ainda há dias o relógio
parou e deixei de compreender
o tempo
e a sensação de alguma
felicidade que nos venderam, 
chave na mão e de sorriso aberto, 
o que nos resta, o que fica
connosco para sempre é o
silêncio

6.

esse é o único verdadeiro
momento privado
em que percebemos
que o regresso será
impossível,
que os dias terão agora um
outro sentido
que o fim, quando chegar, 
será não com um estampido,
mas sim com um suspiro.

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