segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Um poema de David Teles Pereira


Há dias em que não penso uma só palavra
que queira dizer-te, dias em que as fronteiras entre os homens
se encontram permanentemente abertas ao estreitar de mãos,
como laços de gravata a fecharem-se sobre o colarinho da camisa.
Não penso sequer na tua nuvem a morrer todos os dias à minha porta,
mas diz-me, diz-me afinal de contas tudo o que quiseres.
É que eu, eu passei demasiado tempo na tua pele,
a sonhar os gregos com intenções de cerâmica e laser,
e agora é Outono a caminho do teu rosto,
resta-me passar a rua pelos olhos, pedir café e uma amostra de cinema datado,
tal como a originalidade da nossa história,
entregue a amanuenses talentosos na hora de nos ortografar bem.

Não pareço feliz, mas pareço belo.
Terá de ser suficiente para agarrar pelos cabelos a onda
e fugir para tão longe da praia,
sempre a fingir esta versão super-heróica de mim próprio
de lábios, olhos e estômago pintados
ao jeito de uma obsessão ostensivamente recente:
tendências nunca reconhecidas nos séculos precedentes.

Admitir maternidade nestas putas de livros, à falta de linhagem feminil
que justifique a brandura da nossa crónica,
nunca como um truque, mas como uma tragédia,
enquanto dormes, a fazer de conta que eu estou aqui,
noite após noite, a tentar perceber porque é que a leitura conjugada
deste e daquele sentido é quase uma colagem
ao lastro de justiça daqueles que nos correm na família.
Escrever na terra prova uma série de coisas,
mas provas bem melhores surgem ao apagá-la,
porque a terra não se encontra com a terra, nem com o sangue.
Não somos pessoas agradáveis de conhecer.


David Teles Pereira. Biografia. Lisboa: Língua Morta, 2010.

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